De Volta à Iripixi

Um luar dos primeiros dias de agosto refletia, enquanto dançava com o balanço das vagas da baía de Guajará.

Debruçado sobre o parapeito, aquele velho professor de História e Advogado tentava livrar-se da ansiedade da viagem, que faria na manhã seguinte. Depois de sessenta anos de saudades, retornaria a sua terra natal, Oriximiná, município do Pará, conhecida como Princesa do Trombetas, por ser banhada por esse afluente do Amazonas.

Como a parábola do Filho Pródigo, como o itinerário da evolução, havia deixado a casa paterna, a terra natal, descera o Rio Amazonas, para estudar, formar-se e viver na capital do estado, Belém.

Com a consciência expandida, na manhã seguinte, subiria o Rio, de volta à terra natal.

Acordado pelo som, sempre irritante do despertador, reconhece a eficácia do passeio da noite anterior, pois tivera um sono profundo.

Desta vez, a viagem teria o “gaiola” - termo como eram conhecidos os pequenos navios, que ligavam os municípios paraenses do baixo e médio Amazonas à Capital - substituído por um avião.

Sua experiência não precisava de nenhum daqueles avisos dados pelos comissários antes da decolagem.

Necessitava era controlar aquela mistura de tensão e emoções de um reencontro protelado por muitos anos.

Explode em sua mente a imagem de sua partida de Oriximiná. Entra no “gaiola” atracado ao trapiche, levando pendurado ao ombro uma sacola de pano, fazendo às vezes de farnel e contendo sanduíches, frutas e doces. Na mão esquerda a maleta com tudo que contaria, para o início da nova vida. Acenos da despedida com a mão direita e na boca o gosto salgado de lágrimas incontidas.

Imagens amareladas pelo tempo e distantes sessenta anos da imagem presente: imensos e alvos flocos de nuvens coloridos pelo brilho de raios de sol, como adereços do desfilar do amanhecer.

Decidira viajar naquela manhã de domingo, pois era seu desejo assistir a festa de fé ao padroeiro, Santo Antônio, que acontece todos os primeiros domingos de agosto.

A mais forte e viva imagem que guardara fora, justamente, o primeiro Círio Fluvial Noturno, que ocorrera meses antes de sua partida.

Apesar de seus doze anos incompletos, gravara, além das imagens, a data: 04 de agosto de 1946.

Os trancos do trem de pouso e da frenagem das turbinas interromperam suas lembranças para: o desembarque; o encontro com parentes e amigos; o almoço; e a cesta numa rede.

Acordou ouvindo uma voz doce, que mais parecia declamar seu nome. Antônio José, diferente do despertador, soava como um poema: “Antônio José acorda, senão não assistirás ao Círio”.

Assustado com os mesmos olhos cor de mel e cabelos negros ondulados, de sua prima já falecida, Dulcemar.

As águas do lago Iripixi testemunharam aquele inesquecível e cheio de curiosidades primeiro beijo, no seu primeiro amor. Refeito do susto, não se conteve e observou : lembras demais tua mãe.

Enquanto banhava-se numa ducha morna de chuveiro elétrico, lembrou-se das mãos zelosas de sua mãe a derramar-lhe água fria retirada com cuia de uma tina, que ficava no porão do casarão dos pais.

Recordou os círios que assistira antes do primeiro fluvial e noturno. Eram pequenas procissões terrestres que aconteciam todos os anos do dia 1º até o dia 15 de agosto. Diariamente, a imagem saía da casa de uma família da comunidade até a Igreja Matriz, onde eram realizadas as orações em louvor ao Padroeiro de Oriximiná.

Lembranças do orgulho e alegria de seus pais, nas vezes que o cortejo teve seu início a partir do casarão da Rua Barão do Rio Branco, onde nascera.

Perfumou-se com priprioca de um vidro largado sobre a pedra da pia do banheiro.

Quando viajamos, alimentados por nossas raízes e transportados por correntezas de rios de lembranças, que banharam nossa infância, cores, sabores, aromas, sons e até mesmo toques são transformados em momentos vividos.

Com o aroma da priprioca, surgem as mãos maternas tentando perfumar Antônio, para assistir a Trasladação do primeiro Círio Fluvial de Oriximiná.

A imagem de Santo Antônio foi levada da Igreja Matriz até o Lago de Iripixi. No trajeto terrestre da Igreja Matriz até o Porto, a imagem da fachada do casarão onde nascera.

Lembranças dos devotos carregando tochas para iluminar o trajeto. Do Porto seguiram em canoas até a casa de D. Mundica, no Lago do Iripixi.

Arrumou-se e caminhou até o Cais, localizado na entrada frontal da Cidade, para assistir ao Círio Fluvial, hoje aperfeiçoado pela criatividade dos fiéis e pela competência dos organizadores.

Desde 1947, para embelezar ainda mais a procissão fluvial, o artesão Manoel Afonso da Silva idealizou as barquinhas de madeira flutuante. Cada barquinha leva uma vela acesa, envolvida por um cone de papel transparente e colorido.

Até coreógrafos da festa do Boi de Parintins são contratados, para dar maior beleza ao cortejo fluvial.

Antônio sentiu o acelerar das batidas de seu coração com a aparição das luzes. Serpentes luminosas desenhando, sobre as águas, a passarela para a romaria de embarcações. De repente, na outra margem do rio, surge o primeiro barco iluminado. É o barco de maior porte. Uma balsa demais iluminada e com uma coreografia planejada, para conduzir o Santo Padroeiro.

Encantado e contagiado por aquela festa de luz e fé, recorda-se de seu pai contando-lhe, que lhe dera o nome de Antônio, por ser devoto fervoroso do Santo.

Recorda do pai ensinando-lhe sobre Santo Antônio, cujo verdadeiro nome era Fernando de Bulhões, nascido em Lisboa e que só tomara o nome de Antônio antes de entrar na Ordem Franciscana.

Narrava de seu sofrimento com problemas de saúde e que viveu boa parte de sua vida em Pádua, na Itália, onde morreu. Finalizava com um sorriso e dizendo: “filho: Santo Antônio pode ter sido de Lisboa, depois de Pádua, mas hoje e para nós o nosso padroeiro é Santo Antônio de Oriximiná”.

Foguetório interrompe suas lembranças e, ao mesmo tempo em que forma desenhos dourados, relevo em céu prateado, avisa o aportar da balsa-andor e dos outros barcos bem como o início da procissão tradicional.

No percurso do Cais a Matriz, Antônio sentiu um afago delicado das mãos maternas, o que sempre acontecia durante a procissão como se ela quisesse incentivá-lo a sempre ter presente a fé em sua alma.

Antônio sentiu que só aquele meio dia em sua terra Natal já compensara, em muito, a viagem por tanto tempo adiada.

Como a lenda da Cobra Grande, tantas vezes contadas por seu avô materno, na qual a cobra transforma-se num barco iluminado, Santo Antônio, menos de Lisboa ou de Pádua e muito mais de Oriximiná, tinha transformado seu coração velho e descrente, num outro renovado e cheio de fé.

“Círio de Santo Antônio” é nosso esforço, talvez em vão, para registrar em rimas e melodia a beleza da festa da fé ao padroeiro de Oriximiná.

Círio de Santo Antônio

É agosto, domingo.

Domingo primeiro.

Estouro de fogos

e repicar de sinos.

Acorda Oriximiná,

pro teu padroeiro celebrar.

Sobre o cristalino do Trombetas,

nas sombras do alvorecer,

serpentes de luz de velas,

como velas de barquetas,

deslizam para indicar

de Santo Antônio, a passarela.

Enquanto o azul esverdeado

do belo Nhamundá,

faz-se mais azulado,

para a festa da fé iniciar,

homens, com o coração mais encantado,

dirigem ao porto seu caminhar.

Vivas, aplausos, exclamações

saúdam o dragão iluminado,

cortejo de embarcações,

num rio de velas, como céu estrelado.

Dos fogos, o colorido,

relevo em céu prateado,

vivas ao desembarcar,

de Santo Antonio mui amado,

menos de Lisboa, ou de Pádua,

muito mais de Oriximiná.

J Coelho
Enviado por J Coelho em 07/11/2008
Reeditado em 26/10/2010
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