AS MENTIRAS QUE CONTAMOS.
ANA MARIA RIBAS.
 
Sou escritora porque em alguma parte do caminho intui que só pensar não daria conta da tempestade que se avizinhava. Então, comecei a falar para descobrir que ouvidos não comportariam os pensamentos que me delineavam. Então, tive que escrever. Escrever me garantiu o futuro. Só o futuro, o imenso futuro de gerações esculpidas em humanidade, poderão conter o pequeno enigma das almas que escrevem.  Escrevo, pois para prolongar a existência das cenas subjetivas que não consigo datar.
 
Sou cristã porque, em um determinado dia, mês e ano,  descobri que era uma pecadora. Da pior espécie. Daquela espécie que se sente justificada por nunca ter matado, ou roubado, ou afrontado a lei dos homens. Daquela espécie que ousa abençoar as criancinhas. Tornei-me cristã quando passei a pedir que as criancinhas me abençoassem. Desde então, fiquei maximamente abençoada pela compreensão de que “aonde abundou o pecado superabundou a graça.” Depois disso descobri, enfim, o que é a essência do cristianismo. A essência do cristianismo é quando o homem desiste da própria bondade, olha para dentro e diz: “mas que ser irremediável!”  
 
Sou mulher porque não tenho sexo masculino e nem vocação para ser homem. Nasci mulher até a milésima parte das minhas entranhas. Nasci   para ser Eva, nasci para ser Madalena, e nasci para ser Maria, a mãe de Jesus.
 
 Num único dia sou Eva, sou Madalena e sou Maria. Quando sou Eva, Eva sou – a mãe de todos os viventes. Quando sou Madalena, fico esperando que o meu amigo e Senhor Jesus  liberte-me de todos os demônios que me campeiam, daqueles que, sozinha, não consigo exorcizar.  Quando sou Maria, choro pelo meu filho Jesus, pelo meu pequeno cordeiro sacrificado  em nome dos sacrilégios que, diariamente são cometidos contra a vida.
 
  Se me fosse dado não ser escritora, não ser mulher, não ser Eva, não ser Madalena, e não ser Maria, se me fosse dado por um breve momento ser como Jesus, eu diria: “ não me dêem uma mãe. Não me dêem o destino de  filho desta que haverá de comportar tamanha dor” Se eu pudesse,  libertaria Maria da dor que rolando, rolando, rolando, veio parar bem no meio da palma da minha mão, fechada e dura. Eu sempre soube que essa dor seria minha. Eu sempre soube.
 
Sou mãe porque tive filhos. E não queria tê-los: já naquela época eu tinha a desconcertante certeza de que o mundo não é o melhor lugar para se vivenciar o absurdo de um amor tão grande. Casei-me pensando  não contribuir para a perpetuação da espécie.  Mas, no meio do caminho, havia uma pedra: havia uma pedra no meio do caminho.  Um bonecão gordo, fofo, inteligente, sensível, feito de ternuras nunca dantes experimentadas, despertou-me  a maternidade que eu escondia a sete chaves.  César foi o meu primeiro amor de mãe. Traida fui por este ser: Césinha.
 
(Ôoo gordão eu te saúdo com a nossa saudação particular “ ava gande compá”! A saudação dos césares mutuamente embabascados: você comigo e eu com você . E se você não me ligar esta semana -ainda- contarei para a sua secretária aquele nosso segredo higienista que você ainda não aprendeu.)
 
Fui mãe por culpa desse acidente de percurso, que nem era meu, mas que arranquei do colo da mãe, para  exercer a maternidade que  precocemente se delineava. E também porque nunca tive bonecas, só livros.   
 
 E de mãe de um, tornei-me mãe de outros três. E depois de uma multidão. (Henrique você entra aqui, tá? Não precisa ter crise existencial por causa disso). A filha mais velha, chegou total flex Ana Maria, por fora. Por dentro, uma mistura fina que corta no meio o pai e eu.  O filho do meio, nunca foi nem nosso,  e nem deste mundo. Tinha o selo da eternidade gravada em cada mínima ação, em cada mínimo gesto. “Alguns sem o saber hospedaram anjos” é a leitura mais correta da breve visitação que ele me fez.   A mais nova, essa me é a maternidade possível. As brigas e os afetos que derivam dessa humanidade me fazem lembrada: sou mãe! Sou a mãe  que cuida da cria, que lambe, que embola, mas que também se ausenta, e sabe a hora de dar o fora.
 
E está chegando a hora. Dentro de poucos dias, ela vai partir para mais um vôo solo. Voa meu passarinho, voa!
 
Sou pois um fenômeno que deriva dessas e de outras variantes imagináveis e possíveis. Mas na verdade, o que sou não se pode aprisionar ou descrever em palavras. Até porque as palavras, quando manejadas em causa própria, costumam ser melhores do que o objeto descrito.  O que sou é assim uma mistura de mortalidade com eternidade, um mix de odores e perfumes, um coquetel de sangue,  suor e lágrimas, evolvente em asas de anjos, vôos de serafins, e canto de querubins. Mezzo a mezzo.  Essa mistura me é  tão precária quanto o equilíbrio sobre uma corda bamba.  Mas  é a narrativa que posso fazer, dessa turbulenta e confusa sequência de leituras que fugiram da minha proposição inicial, da mesma forma como a escrita da vida, muitas vezes, nos escapa do controle que gostaríamos de exercer sobre ela. 

 Sem mentir demais: só um pouco.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 10/11/2008
Reeditado em 10/11/2008
Código do texto: T1275456
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