Dançar a Vida
Apesar da violência urbana e do modismo neoliberal das privatizações e das demissões; indiferente ao aumento galopante da dívida brasileira, provocada pelo pagamento de juros altíssimos ao capital especulativo internacional; o dia estava em festa.
O motivo não era, como diria o poeta, porque era sábado. Muito menos porque muitos, assim como nós, caminhavam da ou para a rotina de fazer as compras semanais para o lar.
A estação do amor festejava, com luz e flores, mais um de seus renascimentos.
Voltávamos do supermercado, preocupados com o número de vezes que teríamos de parar para o descanso compulsório do peso das sacolas.
Subitamente, nosso percurso foi interrompido pela dança de um casal de mendigos. O estímulo musical vinha de uma loja de discos e o casal fazia, da própria calçada, o salão de dança.
O que mobilizara aquele casal, socialmente terminal, para expressar o belo? Certamente a necessidade fundamental do homem de expressar-se por meio da arte. No caso, a dança.
Provavelmente, há muito que o casal não se sentia solto, para manifestar o que lhe restara da vida e de sua alegria de viver. Mobilizado pela música, ampliava aquela vivência musical, estendendo-a ao corpo. Saboreava a tentativa de descobrir seu ritmo interno e despertar a via de comunicação que existe no interior de cada ser.
Os dois gozavam a experiência de expressar seus fantasmas , seu íntimo e a tragicomédia de suas vidas. Indiferente à sua situação de excluído da sociedade, o casal transcendia sua dura realidade e indicava aos passantes a dança como um dos caminhos.
Quanta verdade naquela indicação...
A dança, em sua forma de expressão não racional, declara sentimentos e intui "um provável" que as palavras não conseguem transmitir.
Sentimos ou intuímos que o casal, expressara na dança, o arrependimento por terem “construído suas vidas", em vez da loucura ou sabedoria de dançá-las.
Sem dúvida teriam sido sábios, pois dançar é vivenciar nossa relação com a natureza, com o futuro e com os deuses.
Dançar é participar do movimento cósmico. É celebrar a vida.
Se um hino sagrado da Índia diz: "nosso Deus é um dançarino que, com o fogo que abrasa a madeira, irradia seu poder no espírito e na matéria e os arrasta para a dança", por que não nos deveríamos tornar todos "dançadores"?
Se a Índia, para nos transferir a "sabedoria oculta", criou a "Dança de Shiva", como a imagem da atividade divina, por que não deveríamos dançar a vida?
Certamente, aquele casal, com a dança, revelara muito mais.
Provavelmente, vivenciaram que a vida esteve, está e estará sempre disponível para ser dançada. Somente a dança de luz e cores com a melodia da primavera permitiram essa descoberta.
O ritmo, a essência da dança, está na respiração, na circulação, no caminhar, no falar e até nos nossos próprios nomes. Está nos ciclos pelos quais a natureza se expressa.
Determina o nascimento e a morte e as cheias e as secas. Intimamente relacionado ao movimento, ao espaço e ao tempo.
O ritmo é indicador de que, conscientes ou não, a vida dança. Se conscientes dançamos a vida, se inconscientes: "dançamos" ...
Os homens que souberam da íntima relação da dança com a magia, religião, trabalho e o amor; aqueles que acreditaram na dança como celebração da vida, dançaram todos os momentos solenes das suas existências: o nascimento, o casamento, a morte, a semeadura, a colheita , a guerra e a paz.
O peso e o desconforto das sacolas não impediram que caminhássemos com os poemas e as esculturas criadas pelos corpos do casal no pequeno espaço sobre a calçada.
Mais uma vez, as imagens foram expulsas de nossa mente, quem sabe, substituídas por uma mensagem expressa pela via de comunicação interna do casal, por meio da dança: "Como seriam totalmente diferentes nossas vidas e a vida das nações, se os generais, políticos, bispos, pastores, economistas, banqueiros, grandes empresários e donos da mídia vivenciassem a dança”.
Muito melhor seria, se conservássemos a luz da primavera e passássemos a dançar, por todo e sempre, nossas vidas.
A Dança da Vida" são nossas rimas para celebrar a dança, que celebra a vida.
A Dança da Vida
No início era a dança,
que se fez Verbo: “faça-se a luz”,
e da luz, a Dança da Vida.
Dançam as mãos com a semente
e a semente com a terra.
Dançam as vagas na corrente
e as nuvens com os picos de serra.
Dança o fogo para cima
a água para baixo,
a boneca com a menina
e as mãos do guri, quase macho.
Dança o ar na respiração
e o vento com as flores.
Dançam o sangue com o coração
e a luz com as cores.
Dança o homem na colheita
o futuro com a sorte,
o rancor com a desfeita
e a vida com a morte.
Dançam as mãos com a amada
e o ventre na criação.
Dançam as rimas com a palavra
e quadris em noite de São João.
Dançam as velas com o cais do porto
e a massa com a energia.
Dança a alma com o corpo
e o adeus na despedida.
No início era a dança,
que se fez Verbo: “faça-se a luz”,
e da luz, a Dança da Vida.