HEMORRÓIDA NÃO CURA GRIPE. 
 

Ela era loura, chiquérrima, vinda de Curitiba,   e dizia “lindíssimo” com uma classe e doçura que eu sequer suspeitava poder encontrar dentro de mim. Nos dávamos muito bem, apesar das diferenças. Ascender na “escala Richter” da sociedade dos poetas vivos, sempre me foi um tormento, um terremoto interior. Eu mal sabia como existir grosseiramente, como haveria de saber viver docemente, sem sobressaltos, sem atropelos, mansa como uma rosa silvestre? Eu não podia!

  Mas tentava. Como tentava! E para fazer o meu exercício diário de aspirante a imperatriz do reino, eu contava com ela, com os modos dela, com a maneira dela, com as receitas dela, com os doces que ela servia, com as modas que ela trazia, com tudo, enfim, o que ela me oferecia. Mas uma coisa eu não conseguia: era ter o “íssimo” com que ela encerrava todos os seus substantivos. Tudo lhe era de um “lindíssimo” similarizado  que me fazia corar de vergonha, pelo desejo de tomá-lo para mim. Para enfeitar o meu mundo sem adjetivos, sem advérbios e, até, sem muitos verbos.

 Foi com ela que aprendi a andar suavemente pelos salões da “alta sociedade”. Foi ela também quem me apresentou para o tradicional “fondue”. Eu mal sabia que se podia comer queijo com vinho: foi ela! E chocolate com morango: também foi ela! E a combinar prata com prato: foi ela também! Um dia,  tivemos uma discussão boba, acerca de nada: ela dizia que hemorróidas não cura gripe. E eu dizia: “não cura, mas faz esquecer.” No fim, ela concordou que sim: que quando se tem um incômodo maior, o menor acaba diluído no mar de sangue.

 Mas ela que me dava tudo quanto tinha,  não me dava o “ lindíssimo”. O “lindíssimo” era dela. Como também o “puríssimo”, o “amicíssimo”, o “perfeitíssimo”, todos os “íssimos” eram dela.  É bem verdade que ela não escrevia, ela só dizia. E quem não escreve não é dono. Ou é?

 Eu pensava que não. E dessa maneira, secretamente, eu tinha o “lindíssimo” muito bem desenhado nos meus textos, naqueles que ficavam guardados na gaveta, sempre aguardando  o momento de poder sair do armário:  “tenho um cachorro lindíssimo.” Ou “ o céu  está hoje de um azul puríssimo.” Falar eu não podia – então escrevia.

 Mas com que pesar eu percebia que não alterava em nada o panorama do meu mundo sem superlativos: meus cachorros nunca podiam ser lindíssimos e nem os azuis do meu céu podiam ser puríssimos. No máximo, podiam ser lindos ou puros. Porque o “lindíssimo” e o “puríssimo” eram para sempre dela.  Aonde ela ia, tudo se fazia um grande superlativo, de modo que, a mim, só restava viver o mundo em suas ínfimas  regularidades.  

 Confesso que a idéia de ser assim “superlativada”  me era recorrente. Quando  a via de longe,  via-me  também de maneira lindíssima e impossível. E, para meu tormento, sempre que me acompanhava um acessório novo, uma bolsa nova, uma sandália nova, qualquer coisa nova,  – cópia fiel da que eu vira com ela – já podia pressentir a sua voz doce, suave,  modulada dizendo com a habitual candura chic : “menina, mas que bolsa lindíssima.”

 Como que adivinhando o meu tormento, ela prolongava as sílabas do “lindíiiisima” fazendo com que eu ainda mais desejasse ter o que já lhe pertencia. Coloque a língua no céu da boca para dizer “ lindíssima” e você terá essa espécie dolorosa de “lindíssima”: coisa de gente que nasce com o bumbum pra lua, em lençóis de cetim, com monogramas bordados a fios de ouro no Tibet.

 Mas assim que reconheci o selo da posse, passei a respeitar o que, afinal, lhe pertencia. Eu adoraria ter dito isso: mas não disse.   Sempre fui pessoa de respeitar direitos autorais. Até porque venho de uma época em que ainda não havia a praga da globalização. Essa praga que faz com que as palavras se disseminem com muita facilidade – como cachorro sem dono,  passando de mão em mão. As palavras – essas- não aprenderam a pertencer. Não guardaram intactas o sabor da domesticidade. São palavras fugidias: acostumaram-se a viver sem dono.  

 Hoje mesmo vi na web Ivete Sangalo dizendo que estava “sequelada.” Pois da primeira vez que algum sentimento deixar sequela em mim, também vou dizer: “ eu hoje estou sequelada.” Sem medo do plágio. Porque no momento mesmo em que Ivete inventou essa palavra e colocou na web, a palavra voou e veio parar aqui comigo. E pelo caminho arrumou 2.500 donos.

  Mas por esse tempo, eu não estava “sequelada”, eu só estava ligeiramente embabascada. Querendo, sem poder ter. Lambendo, sem poder engolir. Cheirando, sem poder provar. Coisas de olfato e de aspirante ao oficialato. Um dia, cresci. E cresci, observando a árvore na frente de casa. O trabalho que a natureza fez na árvore, eu disse: “Deus, faça em mim.” No “gran finale” da árvore, virá o meu.

 Quando descobri Marilurdes, também descobri o “altamente competente.” Marilurdes patenteou essa expressão e onde vai, o “altamente competente” vai com ela. Não posso tomar para mim. Não posso. Pertence à Marilurdes. Como o “lindíssimo” pertence à minha amiga Eneida. E como “sol saariano” pertence à Rosa Montero.

 Em compensação, encontrei jogada na lata do lixo, a palavra “reverberação.”  Como também encontrei “cristalizar”. E sua variável mais próxima: “cristalinizar.” E a prima mais distante: “cintilância.” Quando descobri “cristalizar” sai “cristalinizando” tudo por pura caridade. Porque o mundo tem estado muito opaco e as vidraças estão sujas. Mas, assim que ficarem limpas, eu mudo. Não quero ser escritora de palavras da terra: meu negócio é o céu.   

Tenho palavras celestiais que são só minhas: que Deus mas deu.  Eu as escondo quando finjo que estou apenas escrevendo. Reservo as melhores, as mais raras, as mais devotas, para o meu uso secreto. Não irei expor à visitação pública as minhas palavras mais belas. Tenho medo que alguém roube as minhas palavras, da minha própria pessoa, se eu não as  souber guardar.  

Nessa hora, essa pessoa não sou eu – é a guardadora de palavras. Como existe o caçador de pipas, também existe a guardadora de palavras. Tarefa inglória e cansativa porque quando digo “não é todo dia que nasce uma rosa amarela no meu jardim” nesse mesmo dia, uma rosa amarela pode estar nascendo no jardim dos outros a 1.000 km de distância. Por isso guardei tanto tempo comigo a rosa amarela. Para descobrí-la, ontem, fantasiada de rosa vermelha em vestido púrpura. Mas é para uma dama lindíssima: que a dama seja pois, felicíssima. E que a borboleta sempre volte ao seu jardim. 

 Agora já foi, já era.  Amanhã, nascerão muitas rosas amarelas e eu vou ter que encontrar a minha semente de rosa lilás. Quando uma pessoa realmente deseja algo, consegue. E quando uma pessoa realmente fica magoada, perdoa. E esquece. E segue em frente.

 “Serei dura, silenciosa e heróica.” – Clarice Lispector.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 12/11/2008
Reeditado em 12/11/2008
Código do texto: T1279035
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