Dia da Criança
Estávamos reunidos na creche da fábrica para participarmos das louvações a todas as crianças, lá representadas por nossos filhos.
As “tias” idealizadoras do evento previram a fala de Dona Pilar, a mulher mais velha da comunidade.
Dona Pilar, que emigrara da Amazônia, trazia as marcas da filária nas pernas deformadas e inchadas, bem como um sorriso terno e resignado no rosto. Desajeitada pelo peso das pernas, mas firme pela história dos anos vividos, subiu ao palco e começou a falar sem qualquer inibição:
“Acredito que esses dias, comemorativos da Pátria, das Mães, dos Professores, dos Pais e o de hoje - da Criança -, funcionam como a confissão para alguns católicos. Reunimo-nos para aliviar as culpas acumuladas por todo um ano de atos e ações sem qualquer compromisso com aquilo que, uma vez por ano, louvamos e festejamos”.
Após os festejos desses dias, sentimo-nos perdoados e puros para continuarmos a agir do mesmo modo e sem qualquer anseio de mudanças...
Essa constatação é fruto das minhas observações durante toda minha vida...
Muitos foram os dias comemorativos às crianças de que participei. No dia seguinte, nada muda...
Lá vão mulheres grávidas, perdoadas e recuperadas pela participação nos festejos, fumando e agredindo seus bebês com tragadas de fumaça.
Lá estão doces vovôs intoxicando seus netinhos com refrigerantes e sanduíches coloridos com massas artificiais de mostarda e tomates.
Vejam, quantas carícias e quanto carinho são demonstrados por aquele pai exemplar que, ao instalar no quarto do filho um Micro e uma TV, para que a criança possa assistir a programação das “xuxas” ou aquelas vesperais da violência ou, ainda, jogar com seu melhor amigo - o Micro, vai assim construindo no filho uma forte intimidade com a máquina e uma doce e duradoura solidão.
Observem quantos pais estão presentes às louvações às crianças e amanhã estarão evitando e desviando-se do exército de menores abandonados pelas ruas da cidade.
Muitos poderão estar pensando em quanto agressiva está sendo minha fala. A esses respondo, perguntando: como mostrar com suavidade a farsa e a agressão dos adultos para com as crianças?
Antes de encerrar minha fala, quero implorar às mães dessa cidade que se organizem e liberem sua juventude. Saiam em passeatas ou outras manifestações coletivas e exijam de nossas instituições um programa, tão eficiente quanto o cinismo da maioria de nossos políticos, para agasalhar as crianças abandonadas pelas ruas em escolas, quartéis, igrejas, clubes e empresas.
Nessas manifestações, certamente descobriremos que precisamos agasalhar alguns de nossos filhos que, sem sentir, abandonamos.
Pelo interesse por todas as crianças da cidade, perceberemos que é necessário alimentar muito melhor nossos filhos e aproximá-los muito mais da natureza. Entenderemos que é preciso amar a criança oculta no íntimo de cada um de nós, para amarmos todas as crianças deste planeta.
Quando esse milagre for realizado por nós, gente grande, a sinfonia da algazarra das crianças nos parques substituirá o gemido humilhado, a risada idiota e o torpor pálido produzidos pelo desespero e solidão afogados no “cheiro da cola”
Criança Desesperança
Na proteção do colo uterino,
Ainda sem saber a “graça”,
já recebe , com carinho,
densas tragadas de fumaça
e ardentes goles de cachaça.
Sob a proteção do Instituto,
num leito de Maternidade-Escola,
num dia, não se sabe ao certo,
de alegria ou de luto,
nasce o argumento para pedir esmola.
O bebê se faz criança,
o nariz é só catarro,
símbolo da desesperança.
Barrigudinho e com o pinto de fora,
corre para os vidros do carro.
Barrigudinho e com o pinto de fora,
corre para os vidros do carro.
Se assusta com a boneca e a bola,
mas esquece, brinca, come,
viaja e sonha, cheirando cola,
mas esquece, brinca, come,
viaja e sonha, cheirando cola.