COM QUE PERNA QUE EU ANDO?
 
No livro “A Louca da Casa” a escritora espanhola Rosa Montero usa uma fábula para defender a liberdade que todo escritor deve ter ao desenvolver o seu processo criativo: “Uma barata má e invejosa, irritada porque a centopéia tinha muito mais patas do que ela, disse ao miríapode com malévola adulação: “Que graça maravilhosa você possui ao caminhar, que coordenação incrível, não sei como consegue se locomover tão sinuosa e facilmente com todas essas patas, poderia me explicar como faz?” A centopéia, vaidosa, estudou-se a si mesma e depois com toda boa vontade informou o procedimento: “É muito fácil; basta mexer as cinquenta patas do lado direito para adiante, enquanto mexe para trás, sincronizadamente, as cinquenta do lado esquerdo e vice-versa.” A barata fingiu admiração: “ que fantástico! Poderia me fazer uma demonstração?” E a centopéia nunca mais conseguiu se mexer.” Montero, Rosa – “A Louca da Casa”- editora Agir, pág. 37.
 
Mas isso é porque eu não estava dentro das páginas do livro. Porque se eu estivesse, teria dito à centopéia: “Filhinha, mesmo sem saber como, nesta manhã de quinta feira, você deve mexer-se. Mexa-se simplesmente, uma perninha para lá, outra para cá, e ainda que lhe falte molejo para um rebolado literário do tipo enredo de escola de samba, ser-lhe-á  melhor do que ficar para sempre atolada em sentimentos de auto comiseração."
 
O processo de escrever é um prodígio em termos de individualidade solitária. Escreve-se em completa solidão e não há como desenvolver parcerias sem que a obra fique prejudicada. Escrevi um livro a quatro mãos e sei como é complicado o processo de dividir a cria. Duas mãos querem que o filho tenha olhos azuis, e as outras duas preferem que os olhos sejam negros. E o grande perigo é que a criança nasça, por fim, com um olho de cada cor. O leitor, que não é bobo, percebe. O leitor que tem o distanciamento crítico necessário identifica de longe: ali vai um ser cuja genética comprou uma briga de foice na hora de o conceber.
 
Quando entrei no RL, eu nada sabia de interação. Confesso para vocês que não conhecia esse método de  primeiro ler, para depois escrever. Eu escrevia e depois lia. E, para confessar um pouco mais, lia de forma desordenada, hoje um, amanhã o outro, e depois mais aquele outro. E as vezes esse amanhã, se perdia e eu nem mais lia. Com o tempo, as parcerias de identificação literária foram-se formando mas eu continuei, escrevendo primeiro, lendo depois. Se fosse um filme de ação, eu estaria em grande vantagem porque estaria atirando primeiro. Mas os filmes aqui não são propriamente de ação – são de revelação. Conforme se sabe, o escritor quando escreve, revela-se: em corpo, alma e espírito.  E se a “boca fala do que o coração está cheio”, a pena escreve o que o pensamento guarda como depósito sagrado.  É inevitável.
 
Ocorre que, nem sempre o que o escritor pensa revelar é compreendido por todos da maneira como ele pensou revelar-se. O escritor já se sabe, é um grande inventor e muitas de suas narrativas nada mais são do que as suas fantasias, os seus personagens – trágicos ou cômicos- os seus melhores projetos de vida que nunca sairão do papel,  mas como papel recebe muito bem papel, desempenhamos todos os papéis, pensando que todos os leitores comprarão os nossos melhores papéis. Até porque de graça os ofertamos.
 
Mas não é bem assim que acontece: os leitores compram não o que o escritor oferece, mas aquilo que querem comprar. Lebre para quem quer lebre, gato para quem quer gato, e gato por lebre para quem quer gato por lebre. O leitor tem a sua óptica, que ao interagir com o seu conceito de vida, faz com que o texto desemboque, afinal, na visão subjetiva e pessoal. Essa é a foz do rio, o momento apoteótico, em que, ele finalmente, está pronto para desembocar no mar. 

Mas: entre a nascente e a foz, o caminho.
 
E é aqui no caminho que tenho encontrado certa dificuldade para estar escritora. Não encontro dificuldade em ser, mas encontro dificuldade em estar. A tal da interação que existe aqui,  entre escritores, e que só recentemente eu descobri, por vezes avança os limites do imaginário individual e alcança o imaginário coletivo. E aí instala-se um anacronismo crônico e contagiante com o qual responde-se -ontem- um texto que só será escrito amanhã. As respostas chegam antes dos questionamentos, e dessa maneira os temas não se originam, eles são originários.

 Muitas vezes  pensei estar curada de ser agente ou paciente desse mal. E muitas vezes, fiquei em quarentena. Mesmo que muitíssimo bem intencionada, sem intenção de ferir, de magoar, de ofender, -que essa não é a minha praia,- já fui entendida como ofensora. Já recebi e-mails de gente que, sentindo-se ofendida revidou a ofensa e, consequentemente:  o texto. Que o texto é a nossa arma mais poderosa, a nossa bomba de Hiroshima.  Que atinge também Nagasaki e adjacências.  Já recebi e-mails de pessoas que eu sequer lembrava a existência, pensando ser o(a) protagonista da minha história. E depois, outra coisa não me restou fazer a não ser deixar de ler o que essa pessoa escrevia, para não alimentar mais a teia que sub-repticiamente se formaria. Porque dessas coisas, o capeta gosta.
 
O que devo dizer de uma vez para sempre, nessa manhã de centopéias, é que  não conseguiria estabelecer sinapses neuronais em número suficiente para atender a tanta demanda. Eu simplesmente ficaria paralisada como a centopéia, se tivesse que limitar o meu processo criativo às interpretações individuais, nesse universo de individualidades compartilhadas. Mesmo que, nesse individual, estejam pessoas que conhecemos pelo nome, e que valorizamos como profissionais, e que respeitamos, como seres humanos.  Na hora de escrever, não dá. Quem pensa: vou escrever um texto para esta pessoa, encontra uma séria dificuldade: escrever um texto para essa pessoa. Mas escrever um texto, tendo na mente várias pessoas, querendo agradar a todos, ou desagradar a todos, não é uma dificuldade: é uma impossibilidade. Isso é algo que só o escritor de novelas domina. E domina sem conseguir entregar o papel de protagonista para todos os que sonham com ele.
 
Nesta manhã de centopéia, eu quero dizer o seguinte: eu não sou escritora de novelas. Há quem seja e escreva com a leveza e a ficção que o tema exige, embolando os personagens da trama sem o devido cuidado que uma pessoa só precisaria conceder-se na vida real. Mas para um novelista, faz parte do show.

Mas a minha vida não é novela. Aos que me seguem, como novela, eu recomendaria que mudassem de canal. Eu escrevo como quem escreve um livro e esse livro contém uma parte da minha história e uma parte da minha imaginação. Pela parte que ele contém de história, eu peço respeito. Pela parte que ele contém de imaginação, de fantasia, eu peço atenção: plágio é crime previsto no código civil com as devidas sanções que lhe são cabíveis por lei: no meu caso pela lei do coração, porque se eu quisesse ser jurista, teria que ter concluido o curso de direito. E eu só conclui o curso de História. 

Que "chic", se eu fosse plagiada todos os dias. Não sou. O que me sobra, pois, de consolo, é o velho ditado: “ninguém atira pedras em árvores sem frutos.” Mas vamos devagar, gente, porque o fruto nasceu para alimentar, e a árvore para oferecer o fruto, mas nem árvore e nem fruto vieram ao mundo para ser apedrejados.  Árvores com frutos vieram para missões mais nobres . E quem os reivindica é o próprio Deus.
 
Nessa manhã de centopéias, quero dizer com toda a sinceridade do meu coração: não sei se já fui a barata da fábula. Se fui, não o fui conscientemente. E hoje, no papel da centopéia que tenta se mexer, eu penso que o problema todo se origina no fato de que a tal interação precisa guardar as proporções corretas para que o antídoto não vire veneno. Em boa medida é saudável, além da medida mata. Guardemos, pois, a justa medida.
 
E agora seria, o caso de perguntar à centopéia: - viu centopéia como funciona? Funciona assim: você ora, Deus lhe ensina a andar de novo, e você anda e ainda escreve - de novo. Anda e escreve- outra vez.  Anda e escreve - e continua.  Escrevendo.  Embaixo do sangue de Jesus.

 

Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 13/11/2008
Reeditado em 13/11/2008
Código do texto: T1280887
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