A Lenda do Prometeu Pós-Moderno

O atrevimento da navegação pela mente humana é uma empresa, no mínimo, curiosa. A começar pela certeza cabal de que a mente existe. Mesmo os mais céticos e materialistas não duvidam disso. Mas, "como" e "onde", são questões que, se por um lado perturbam a comunidade científica, por outro, são um Nilo para pregações e apregoações diversas. A mente humana existe, pois! Mas sabe-se lá em que lugar.

Mas é numa linha muito menos ousada que a traçada pelos estudiosos do psico que desenrolarei o carretel da nossa prosa. Na humilde opinião do néscio que vos escreve, tão importante quanto o oculto e abstruso funcionamento da mente humana, é o processo Histórico (logo, Social e Político) da formação das certezas que nos embasam. É absolutamente correto afirmar que são recíprocas, mas há aqui um novo silêncio epistemológico: como exatamente se dá tal relação é outra dúvida crônica.

É preciso, então, pelo menos, voltar ao início do século XIX – a belle-époque da ciência! – para entendermos um bocado dos mitos e das ilusões que nos enfeitam a ignorância moderna. A Segunda Revolução Industrial possibilitou ao (já) ansioso e audacioso homem, "provas" necessárias de que poderia dominar a natureza que o oprimia; e o sonho de se ver à frente das leis naturais começara a tornar-se à mão. Pois, então, que o homem se adiantou, logo, a matar Deus. Um tiro seco, na nuca. E, enquanto isso, a troca de roupa. Jogou-se fora todas as insígnias e títulos que se referiam a um passado logo tratado como remoto, e vestiu-se, de véspera, ternos de corte e black tie. E foi realmente tudo muito ligeiro. Pra se ter uma idéia, em 1831 Michael Faday apresentou a Royal Institution a teoria da indução eletromagnética e, já no ano seguinte, foram fabricados os primeiros motores elétricos. Um verdadeiro gozo - precoce! Mas, qual o problema? Estava-se a pagar a rapariga... E fora dada a largada para a frenética e anti-humana corrida contra o tempo.

Mas o essencial aqui é outra questão. A SRI, vestindo a carapuça de juiz de paz, selou o matrimônio entre tecnologia e ciência. Hoje, nos soa até um tanto ou quanto estranho uma dissociação entre as partes. Mas a noite de núpcias ocorreu lá por volta da metade do oitocentos. Pensando sempre em botar cada vez mais carvão na Grande Máquina, ciência passou a servir à tecnologia, e tecnologia passou a servir à ciência. E sem puladas de cerca! Foi um espetáculo! Tal aliança se estendeu, muito rapidamente, entre ciência – tecnologia – indústria – universidade. Surgiram, pois, as Escolas Técnicas, as Acadimias Científicas e, claro, empresas e mais empresas para botar pra rolo as mais novas bugigangas. Com isso, ainda na década de 1850, na Inglaterra, já havia mais gentes nas cidades que nos campos. E East Ends da vida começaram a, fatalmente, formigar, com corpos moribundos a andarilhar por todas as Grandes Cidades.

Com as bodas entre ciência e tecnologia (e seus dois parentes: indústria e universidade) e o festejado assassínio de Deus, ficaram prontas as vestes de jerico que nos aparelham a mente até hoje. Execrou-se toda e qualquer alternativa que não gerasse lucro - e ou não fosse politicamente interessante - para ambas. Por exemplo, práticas que se passaram a chamara de ‘medicina alternativa’, durante muito tempo bem serviram de Cristo para o novo casal. Foi moleza tacar pedra naquilo que não oferecia mais-valia, naquilo que advinha da cultura popular, em forma de cuspição de nomes como ‘crendice’, ‘curandeirismo’, ‘charlatanismo’ e afins. As Acadimias foram se formarando sob o rótulo de liberais. Perfeita estratégia! Sob o axioma da livre-concorrência, articularam-se variados novos status quos. E disseram: que seja preso aquele que tratar de um enfermo sem que tenha um carimbo nosso! E dizem hoje: que não entre no mercado de trabalho aquele que não nos pagar com antecedência!

O homem moderno é um ser essencialmente estúpido. Basta que se veja os pressupostos, os alicerces do pensamento moderno incrementados pelos eventos relatados acima: crença absoluta de que a natureza é dominável pela tecnologia; desprezo completo por tudo aquilo que a ciência não comprova com seus métodos – métodos estes que ela própria estabelece; desprezo pelas tradições históricas, sejam populares, seja a própria noção de tempo histórico, e por aí vai...

Cada um, entretido e auto-exilado em seu próprio umbigo, à espera que os Homens de Cima (não celestiais, mas cientistas) lhes digam: “sim, isso pode!", "Não, isso não pode!", "Pensando desta forma, você não corre o risco de ser ridículo.", "Isto aí que você diz não é científico, logo, é falação sem propósito”. É preciso provas, provas cabais... É preciso que o Doutor divulgue a hipótese, é preciso que o telejornal diga foi de tal maneira.... E a massa se estapeia, dividindo-se entre si: gordos, magros, altos, baixos, alternativos, descolados, conservadores, brancos, pretos, amarelos, os que andam de ônibus, os que andam de trem, os que andam de táxi, os que andam com carros velhos e os que andam com carros zeros... todos, todos em luta sem vitória, à espera da unção dos graduados, como espera o pássaro novo, com bico aberto pra cima, a comida que lhe vem delivery.

Não me parece, portanto, que o desbravamento da cavernosa mente humana e a descoberta dos seus medos, suas frustrações e anseios substitua o fio da História, sobretudo enquanto a primeira opcão for feita sob limites estreitos de espaçamento temporal. Para-além das pulsões, basta ver com lucidez e clareza que o aceito como Real e Verdadeiro é friamente estabelecido por um pequeno grupo que se mantém em próspero comando. Disseram que militantes pró-Fidel atiraram no Kennedy, e a massa engoliu. Disseram que um fã frustrado com o fim dos Beatles atirou no Lennon, e a massa, sorridente outra vez, aceitou. Disseram que o Golpe de 64 foi contra o perigo vermelho, e a molecada matou Getúlio, do mesmo modo que fez o homem de séculos anteriores com Deus. E da mesma maneira que se estuda as religiões antigas como mitologio, como alegoria e modo primitivo que um povo perdido no tempo encontrou pra sanar suas dores e confusões. Eis o espetáculo moderno! O fundo do poço!, diria não fosse o perigo iminente e certeiro da Lei de Murphy.

Diogo Nunes
Enviado por Diogo Nunes em 14/11/2008
Reeditado em 01/03/2009
Código do texto: T1282576
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