DOIS REAIS

Ele me pediu dois reais. Nem sei se murmurei alguma palavra ou se fiz algum gesto de negação. Ele se afastou. Olhei pelo retrovisor e vi um jovem de cabelos compridos, a camiseta deixava exibir tatuagens nos ombros, nos braços, no pescoço e nas costas. Pensava cá comigo, vagabundo! Por que não está na escola? Por que não arranja um trabalho. Que idade terá esse jovem? Dezesseis , dezessete anos talvez.

Dois reais. Poderia ter doado esse dinheiro, não me faria falta. Por que não dei? Estava saindo do super mercado, cansada, quase meio dia, hora do almoço, queria chegar em casa. Qualquer minutinho naquele momento era importante para mim. Abrir a bolsa, procurar trocado, era perda de tempo. Depois alimentaria o vício de pedir.

Sentada na minha mesa farta, pensei que dois reais seria o suficiente para comprar dez pãezinhos. Não teria o sabor da salada que estou comendo, do filé gostoso que está na minha mesa, mas saciaria a fome, enganaria o estomago.

“Não dê o peixe, ensine a pescar”. Dois reais era dar o peixe. Fiz certo em dizer não. Mas o que ele pensou a meu respeito? Talvez tenha me chamado de miserável, ou não. Acho que está acostumado a receber “nãos” e uns ainda xingam, humilham, chamam de vagabundo, mandam procurar emprego, eu pelo menos pensei tudo isso mas não manifestei meu pensamento.

Nunca pensei que dois reais pudessem ser tão importante na minha vida. Já é noite e eu continuo me indagando se fiz certo em não doar essa insignificante quantia. Insignificante é uma coisa que não tem valor. Mas essa importância não tem valor pra mim, mas se ele pediu, para ele tem. Depois eu não ensinei a pescar, portanto deveria ter dado o peixe.

Alguém já lhe pediu dois reais hoje? Se você deu muito bem, talvez esteja tranqüilo. Se não deu você parou para pensar o quanto poderia mudar a vida de alguém esse valor que para você é tão irrisório? Poderia ser uma passagem de ônibus que levaria essa pessoa para uma outra vida ou para comprar um analgésico para minimizar uma dor. Poderia ser também para comprar cigarro, um trago de cachaça.

Por que ele não estuda? Por que não trabalha? Tem escolas para todos? É fácil conseguir trabalho?

Outro dia. Estou no mesmo super mercado. Parei o carro quase no mesmo lugar e na saída ele me olhou. Nada me pediu. Talvez tenha me reconhecido. Se não dei ontem também não dará hoje. Miserável! Deve ter pensado ele. Fiquei arrumando as compras lentamente, fazendo hora para ele se aproximar. Nada. Encarei o pedinte, olhei firmemente e sorri. Ele se aproximou. Já estava com cinco reais na mão para doá-lo. Ele sorriu agradecido e aproveitei para puxar conversa.

- Ontem não lhe dei dois reais porque não tinha trocado.

- Não tem nada. Hoje eu compro meu caderno.

- Você estuda?

- Sim, estudo a noite, mas não pude ainda comprar meus cadernos.

- Por que você não trabalha?

- Eu trabalho sim. Faço faxina e cuido de jardim de 7:00 às 11:00 horas.

- Mesmo assim você não tinha dois reais para comprar caderno?

- Esse dinheiro que ganho minha patroa entrega diretamente a minha mãe para as despesas da casa. Tenho 4 irmãos mais novos que eu e meu pai está desempregado.

Procurei as tatuagens no seu corpo e não encontrei nenhuma. Ele explicou que não eram permanentes. Justificou que o cabelo estava grande porque não tinha dinheiro pra cortar. Que nem sequer gostava de usar camiseta mas não tinha outra roupa para vestir. Dei-lhe muitos dois reais, para cortar o cabelo, comprar material escolar, comprar roupas adequadas a seu gosto. Ele não é vagabundo, ele estuda, ele trabalha, mas pede porque o que ganha não é suficiente para manter-se.

Não generalize. Antes de negar dois reais dialogue.

Maria Dilma Ponte de Brito
Enviado por Maria Dilma Ponte de Brito em 16/11/2008
Reeditado em 11/05/2020
Código do texto: T1287229
Classificação de conteúdo: seguro