Baratas de minha vida

No tronco de uma árvore, num ponto de ônibus, tive a companhia de uma barata. Estava viva, coisa raríssima de ser encontrada pelas ruas. Sempre vejo os pedaços ou achatada por pés descuidados e pesados que passam pelas calçadas.

E não é que uma barata viva, na rua, é como qualquer cidadão? Não causa nojo, desespero ao vê-la movimentando-se, nada. Absolutamente normal olhar uma barata na rua. A rua é algo bem popular, até baratas são bem aceitas e não sofrem discriminação. Pelo menos essa de ontem.

Já obtive grandes lições com esses seres pequenos e repugnantes. Se não fosse o brilho cínico que ficam ostentando nas costas, ficaria até fã. Foi com uma barata que tive uma das minhas experiências adultecedoras. Correção: umas baratas. Lembrei disso ontem olhando a barata passeando pela árvore.

Quando morava só, passado quase um mês, numa madrugada, senti vontade de fazer xixi. Não era a primeira vez que levantava no meio da noite para ir ao banheiro. Mas era a primeira vez que fazia isso e tinha uma barata me esperando na pia.

Na hora que você (sendo mulher) vê uma barata, quase 2 da manhã, passeando pela sua pia, esquece que seu tamanho é infinitamente maior que o da barata, esquece que pode pegar o chinelo e bater nela de uma vez só e continuar seu trajeto, esquece completamente que sua bexiga está cheia e só consegue ficar tentando lembrar se tem ou não veneno em spray no armário dos produtos de limpeza.

Aí, quando você lembra que tem uma lata novinha de SBP, corre desesperadamente uns 3 metros (se foi isso tudo, morava numa kitinet minúscula, ou cabia geladeira ou fogão na cozinha), abre o armário da cozinha, pega o veneno e antes de voltar, mais desesperadamente ainda, tem a impressão que viu alguma coisa mas, seja lá o que for, não é mais importante que a barata da pia do banheiro.

Volta e lá está ela. Mira, como se tivesse daquelas miras de luzinha vermelha e aperta. Graças à química moderna, a barata já era. Você volta contente e vitoriosa, para guardar o frasco na cozinha e para seu horror existe um número enorme de baratas passeando pela sua minúscula cozinha.

Como coube tanta barata naquela cozinha eu não sei. No final contei, eram 5. Mas é que cinco baratas vivas, de madrugada, circulando pelas paredes do armário aberto, pelo chão, pelo vidro da porta do fogão novinho, ganha status de número de projeção astronômica.

Meus pensamentos ficaram tão desordenados como o ballet que as baratas faziam pela cozinha. Você não sabe a vontade que dá numa hora dessas de sair de camisola do Piu-Piu mesmo, pegar o elevador, descer 4 andares e ficar lá embaixo no playground do prédio, olhando a Barra, sentindo a brisa do mar soteropolitano e esperar pacientemente as baratas morrerem por elas mesmas. Uma outra idéia bem cretina que pode ocorrer no momento é você voltar para o banheiro e ficar trancada com a barata recém falecida e largar as outras fazendo da sua cozinha um recanto de amor e poesia.

Você sente vontade de chorar, porque não é justo ter ainda mais barata, numa hora daquelas, causando tanto stress na sua vida, mas se você se der o luxo de chorar as lágrimas podem fazer perder alguma de vista e isso não pode acontecer! Aí sua mente volta a funcionar e faz você perceber que tem uma vantagem enorme em relação às 5 baratas escangalhadoras de nervos - uma lata de veneno na mão.

Agora são miras múltiplas, desisti do lance de miras múltiplas e acabei fazendo uma nuvem de veneno em cima de todas, sem técnica alguma, nem respirava de tanto medo. Afastei um pouco e esperei a nuvem branca dissipar. Uma barata ainda se mexia. Olhando a barata que ainda resistia morrer, senti um nojo ímpar, um nojo solitário. Senti-me só.

Morava só, mas nunca havia me sentido sozinha. Fiquei parada, vendo a barata morrer e quanto menos ela se mexia, mais sozinha me sentia. Não sei quanto tempo fiquei em pé, segurando a lata de veneno quase pura na mão, mas foi muito tempo porque já não sentia direito as pernas, e na hora em que senti que voltei a respirar, estenti a mão para pegar uma cadeira e sentar. Quando toquei a cadeira lembrei do dia que comprei a mesa...

Era sábado. Saí da faculdade e desci a Avenida 7 em busca de uma mesa que combinasse com meu apartamento: tinha de ser pequena no tamanho e no preço. Achei numa loja no final. Acertei com o sujeito para entregar no mesmo dia, pois durante a semana não estaria em casa.

Sábado de tardinha o porteiro avisa que a mesa chegou. Deixaram a mesa e foram embora. Não armaram. O porteiro trouxe e fiquei com a mesa desarmada no meio da "sala". Inconformada na noite de sábado, olhando as cadeiras, corpo tubular da mesa e o tampo de vidro, não entendia porque a mesa não foi armada. Por que meu café da manhã de domingo não podia ser diferente de todos os outros naquele meu primeiro apartamento? Por que o idiota da loja não armou? Se eu armava computadores por que não armaria uma mesa?

Arranquei a proteção de madeira, olhei as peças e armei a mesa. Coloquei a toalha que comprei nas Americanas, o vaso de violetas finalizava a decoração. No outro dia de manhã, para comemorar, fui na Perini, e tomei um dos cafés da manhã mais felizes de domingo. Lembrei de tudo isso enquanto ia sentando na cadeira, olhando as baratas mortas no chão da cozinha.

Estive só, matei as baratas. O medo que tinha tomado conta de mim era de ter de matar outras baratas sozinhas, de ter de fazer tudo sozinha e não ter ninguém pra dividir as coisas. Mas estive só e armei a mesa. Deu o clique: é possível estar só e não se sentir sozinho. As baratas me ensinaram isso.  Aquela foi a primeira e, até então, a última vez que senti solidão.

A barata da árvore, ontem no ponto de ônibus, era igualzinha àquelas (Deus as tenha!): era uma barata professora. Na rua, sem os muros, todo mundo é igual. Na vida, todo mundo é igual. No mundo, ninguém está sozinho. Se não fosse o brilho, eu poderia até ser fã delas.

Andréa Sant Anna
Enviado por Andréa Sant Anna em 26/11/2008
Reeditado em 27/11/2008
Código do texto: T1305017
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