Passeando em Andaraí

- Uma dose de Abaíra com alho? Todo dia?

- Perto do almoço, minha filha. Se espremer limão melhor ainda. Nunca tive uma doença na vida! - e D. Amélia colocou um sorriso peralta e vitorioso no rosto marcado pelos 90 anos de sol na pele.

Lá embaixo continuava a festa que comemorava seu aniversário enquanto conversávamos na sacada da sua casa, em frente ao rio.

Antes um pouco eu tinha assistido minha primeira missa. Apesar de ter estudado em colégio de freira, nunca vi uma missa de verdade. Eu sabia que ia discordar de muitas coisas que o padre pregaria, mas vi tudo e fui a fotógrafa. Foi pouco embaraçoso não saber cantar aquelas cantigas de igreja, a máquina fotográfica era meu álibi: ou fotografava, ou cantava.

Agora o sujeito que é aspirante a padre (esqueci o nome desse cargo católico) era o pé de valsa da festa e dançava a não poder mais. O padre que celebrou a missa olhava com vontade de botar juízo na cabeça dele. Vê se pode, um quase-padre, ficar no meio do salão suando e fazendo contagem das mulheres? É que quando o padreco ia sentando, mostrava satisfeito com os dedos a quantidade de mulheres que levou para a pista de dança.

A banda parou de tocar. Foi quando a morte passou por mim e D. Amélia. Uma mulher ia sendo carregada e um monte de gente atrás. D. Amélia parecia que sabia. Olhou pouco curiosa. Com 90 anos aprendeu muita coisa, até a reconhecer alguém morto a poucos metros. O mais perto que já fiquei da morte.

Rápido como último suspiro, colocaram a mulher no carro e seguiram para o hospital. Quem ficou ali, fez um silêncio. A cidade que não tem semáforo, deu o sinal vermelho na mente de todo mundo. Ninguém tinha coragem de falar na frente de D. Amélia, que prefere ser chamada de Vó Amélia, o que aconteceu junto do padreco dançarino.

A mulher dançava e caiu. Caiu morta. Poucos acreditavam num milagre. Quem viu, mesmo sem ser médico falou: tá morta. Quem ainda não sabia se acreditava ou não que ela sairia daquela boa dizia: ela sempre falou que queria morrer dançando.

Eu ouvia, do lado de Vó Amélia, só os palpites otimistas. Vó sabia que estavam minimizando a situação e não se aborreceu com isso. Diz que não tem 90 anos, que não é velha e que nem de velho gosta. Que é jovem e que o único problema que a juventude trouxe para ela foi a perda parcial da audição. Mas agora não era preciso ser velha para ouvir o que ninguém dizia, ela sabia que a vizinha dela tinha ido.

Sabe que ela preparou várias roupas para quando chegar o dia dela? Mas sempre que morrem outras velhinhas, vêm pedir e ela sempre dá. Vó Amélia não precisa se preocupar com roupa de enterrar, vai viver muito ainda. Mas é precavida, traçou a vida como a renda de bilros que faz todas as tardes na porta da sua casa, vendo o rio passar.

E é gostoso tomar banho de rio! Eu nunca tinha tomado. Foi antes da missa e antes da festa que andei e nadei pelo rio a primeira vez. A água de lá é âmbar, como guaraná. E estava fria como aquela noite. Quando você entra na água até aquele pensamento que nunca foi pensado fica frio, você se sente uma pedra de gelo num copo de whiskey. Com a vantagem que você não está sumindo como o gelo na bebida. Se não fosse a artificialidade do biquini, me sentiria parte do rio como aquelas pedras, como a correnteza, como aquele barulho de água passando.

Se o som da mulher passando fosse igual ao da água passando pelas pedras, a morte ia ser uma coisa mais feliz. Não me parece muito ruim morrer no meio dos amigos, do jeito que se desejou: dançando. Quanta gente consegue isso? O músico que chegava perto da janela de Vó Amélia disse que essa era a segunda festa, em um mês, que ele tocava e acontecia isso. Do jeito que falou parecia que a morte vinha da melodia que saía do violão dele.

Uma menina perguntou: e a festa vai acabar só por causa disso? Ela minimizou ao máximo a morte da criatura. "Só por causa disso" parece que a vida dela não valeu nem isso assim. E quem sabe quem foi aquela mulher direito?

No domingo, enquanto estava na sorveteria tomando uma mistura esquizofrênica de sabores (maracujá verde e tapioca), ouvi muito sobre a mulher. Na cidade pequena, até no outro dia de tarde o assunto era a mulher que morreu dançando na festa interrompida logo depois da meia-noite. Maria o nome da mulher. Maria foi quem morreu dançando. Sabendo que a Maria ganhava uma pensão de 8 mil reais, tinha imóveis hipotecados, filhos mercenários e uma ponte de safena fui andando rio acima.

Lá encontrei a equipe de produção do Cascalho. Um filme brasileiro que está sendo produzido pela região da Chapada, em Andaraí. Um da família São Paulo é o astro. Irving acho. Quem andava comigo ficou cheia de orgulho ao ver o filho da vizinha dela de Feira. Foi falar com ele. Eu não. Ia dizer a mesma coisa que ele ouve todo dia numa cidade pequena como aquela. Ia falar "oi, tudo bem? Fui aluna de seu tio Colbert, recebi meu primeiro e único zero num teste de física elaborado por ele. Tomei aula de Lotus 123 (lembram dessa planilha eletrônica?) com seu tio Wolney, comi um doce de pêssego lá na casa dele que até hoje não achei o fabricante daquela delícia! E fui colega do seu primo que não lembro o nome, mas parece com Éder"?

Não, só continuei olhando a paisagem que estava atrás dele, com o entardecer. Impressionante o sol atrás daquelas pedras na montanha. Sujeito simples, foi simpático com o pessoal que o abordou. Olhou para mim e olhei para ele. Um cumprimento humano, nada extra, ele entendeu meu silêncio e eu o dele. Continuei a descer o rio de volta à casa enquanto achava algumas pedras interessantes pelo leito. Meninos pequenos como morotós pulavam por entre as pedras do rio. Sabem o lugar certinho de colocar os pés. O carro da equipe passou. Um tchau selou meu primeiro encontro com um global.

Duas horas antes vi o cortejo do funeral. Maria ia passando a última vez pela ponte do rio que cruzou todos os anos da sua vida. Dessa vez ela não via o rio nem o rio a ela. Mas os dois estavam ali, juntos a última vez, e nem sabiam. Maria sempre morou lá, na casa da esquina, com seus filhos mercenários e a pensão vultosa.

Fiz muitas coisas a primeira vez em Andaraí. Todas simples. Vó Amélia disse que tem muito mais coisa bonita para se ver. Falou da Festa do Divino. Conversei com dois guias enquanto comprava meu pingente de ágata de fogo na Toca do Morcego. Vou voltar para fazer uma trilha.

Pedi "a bença" para Vó Amélia, entrei no carro decidida a retornar e ver mais coisas maravilhosas. Que terra linda! Só falta escolher a trilha - tem a de Igatu, a da Fumaça, a do Paty...