De volta a Andaraí

Estive em Andaraí há 4 anos. A cidade continua uma graça. Da primeira vez fui lá para um aniversário, dessa vez para passar o São João.

Andaraí não é a mesma sem D. Amélia, vó Amélia. Hoje ela deve estar colorindo os dias e falando com seu jeito tranquilo e sábio em outro plano. Possivelmente está fazendo sua renda de bilro também. E o copinho de abaíra com alho, será que ainda toma? Sempre que pisar lá, vou lembrar dessa senhora extraordinária, parecendo que saiu de um documentário da TVE direto para meus olhos.

Para quem não conhece Andaraí, é uma cidade pequena cheia de surpresas. Era, quer dizer, ainda é, local de garimpo. É possível ver trilhas e a ação dos garimpeitos nas pedras que contam a história da cidade. Tenho a impressão que se mexer, encontrarei embaixo de cada pedra algo novo.

Falando em pedras... O que leva um irmão mais velho ouvir a idéia de um mais novo? Um surto de insanidade talvez. Não sei para que fui apoiar meu irmão na brilhante idéia de irmos, sem guia, para o nome Andaraí, que fica no topo de um morro bem em frente a pousada onde ficamos, a Solar da Serra. Fora de trilha, levamos pouco mais de duas horas, só para ir. Chega uma hora em que todas as pedras são iguais, toda planta é cacto, todo minuto parece daquele sol do meio-dia, e todo lugar vai levar você para um canto diferente do que você quer ir. Além disso, no meio do mato, os gafanhotos têm o tamanho de pequenos pássaros (isso é pavoroso), praticamente voam, e todas as pedras são muito duras. E foi em nome dessa dureza que resisti heroicamente ao impulso de me arremessar em qualquer canto quando via os gafanhotos de um palmo que pulavam nos arbustos bem na minha frente.

Nossa sorte foram duas mulheres, lavando roupa num pedaço do rio, que nos ensinaram como voltar, senão estávamos até hoje tentando retornar, podem ter a certeza. Creuza disse "a gente nunca vem lavar roupa aqui, é mais lá em cima, mas hoje, porque o rio tá baixo, viemos cá". Quase bíblica a coisa, providencialmente divino como Moisés e o mar Vermelho. O rio baixou e fomos salvos.

Neste dia, meu sangue estava em ebulição e foi o tempo de botar um biquini e seguir para a área da pousada onde têm piscinas naturais e o ofurô. Sangue quente em contato com água gelada resultou em coração parando assim que submergi e o pulmão empedrou, senti como se o oxigênio tivesse congelado. Possivelmente o olho também esbugalhou, mas não tenho certeza. Deliciosa a sensação pós choque térmico. Meu corpo parecia uma fonte de calor nuclear, sentia as ondas de calor saindo de mim. Para completar o merecido mimo depois de horas perdida nas pedras, e um joelho machucado, saboreei um licor de jabuticaba docinho, já no ofurô. A vida é belíssima nessas horas.

Não podia perder nesta noite a festa no clube. Forró organizado para arrecadar fundos para a Festa do Divino de 2009. O salão quadrado do clube estava decorado e com luz negra, brinque! O forró comendo e o povo sem dançar. O músico mudou radicalmente o repertório. Começou a tocar "como é grande, o meu amor, por você..." e apareceu o primeiro casal. Zé Borracha e sua esposa. Dois velhinhos. A cena era quase de filme. Em Andarai tem muito disso, as coisas são muito clichês, muito como a vida acaba sendo e a gente faz de conta que não é. Apesar da idade avançada, ele conduzia ela com leveza, com carinho, com amor.

Zé Borracha tem nome, até me disseram, esqueci, mas explicaram que em Andaraí todo mundo tem apelido. Depois deles, vários casais, jovens e de meia-idade perderam a vergonha, arrastaram o pé, limparam a fivela, dançaram horrores. Tinha o cowboy florescente (a camisa branca na luz negra ficou sucesso!) e sua dama, tinha o Frankstein e sua companheira de história de amor-terror, repare. Frank é quase quadrado, lembra Bob Esponja, grandão, desajeitado para dançar e já caiu derrubando mais 2 casais em outra festa. Era casado com uma mulher e conheceu essa do salão, viraram amantes. O marido dela e a mulher de Frank, por vingança, também ficaram juntos e vivem felizes desde então e para sempre. Não é coisa de filme?

E o quase padre, que conheci no aniversário de 90 anos de Vó Amélia, vai se ordenar este ano estava lá na festa, se esbaldando de dançar, que nem na festa de Vó. Mas dessa vez, ninguém dançou, dançou e caiu morto, como da outra vez.

Apaixonei-me por Lupita, uma cadela poodle branca, pouco maior que a minha, com o triplo do peso. Está gordinha demais, mas um amor, dócil como a cidade. Nunca me viu e ficou em meus braços. Obviamente eu e a dona trocamos figurinhas e segredos caninos aprendidos. Conheci um Lupe, no rio, um filhote vira-lata, das duas mulheres que lavavam roupa. Foi o latido dele que nos mostrou elas na imensidão de pedras.

Andaraí me estréia em muitas coisas: experimentei no outro dia o São João de Casa em Casa. A concentração foi lá na pousada, daí o carro de minha madrinha saiu amplificando o som do trio pé de serra para todas as paradas onde as pessoas entravam nas casas dos amigos para beber licor e comer amendoim cozido, bolo... Desci a rua, passamos pelo rio, por uma praça, por alguns comércios e quando passei pela Guimarães Auto peças, uma loja enorme para os padrões da cidade, cansei. Antes do ponto final, um bar chamado Remelexo, voltei sozinha pela praça toda decorada sentindo os sons da noite de Andaraí. Minha alma estava em festa.

No outro dia, às 8 da manhã estava toda embecada para a trilha, dessa vez com guia e para locais mais longes. O Henrique foi ótimo! Sempre gentil, pra toda pedra mais difícil a mão dele estava me ajudando. Ele vai e volta ao Pati no mesmo dia, são 36km de terreno íngreme. Tomei a primeira queda, antes de chegar no destino, a mais dolorida, ele disse que fui batizada. Tomei a segunda queda, leve, e fechei o placar de jaca da trilha com a terceira queda. Depois dessa ele ficou preocupado, pegou minha mão e só largou quando já estavamos atravessando o rio vendo a pousada.

Passamos por pedras, cactos, pedras, cactos, pedras, cactos, mais um pouco de pedras e cactos, bromélias para variar o cenário e finalmente avistamos orquídeas. Gosto mais de girassóis e rosas, mas orquídeas são tão bonitas colocando cor na paisagem espinhosa e pedregosa de Andaraí.

Nosso destino era Três Barras, uma cachoeira de três quedas. Cachoeiras são estranhas. A água vai descendo a vida toda, naquele ritmo, não alaga o local. Combine tudo com o som da água em queda e com o frio característico. É magnético você se jogar lá, pra sentir a água gélida em seu corpo.

Voltei a tempo de festejarmos um aniversário e irmos para a folia na praça principal da cidade. Um grupo de forró, Bruninho do Acordeon, tocava um forrozinho e antes passamos no restaurante do Seu Mazinho, a cerveja mais gelada de Andaraí.

Tardes de jogatina de buraco com Hélio por perto. Figuraça de 5 anos, cabelo de cachinhos loiro, que vivia comendo biscoito, fã de qualquer super-herói conhecido e desconhecido. Ama incondicionalmente o Homem de Ferro e o Homem Aranha. Conhece a biografia do Superman, sabe do seu caso ultra secreto com a Mulher Maravilha (o que me deixou pasma), não dá muito crédito para a agilidade de The Flex (palavras de Hélio), e para a risada sarcástica do Doente Verde (isso, Doente, não Duende). O Spiderman, para ele é diferente do idolatrado Homem Aranha. Tem a roupa marrom, usa chapéu e tem uma corda que faz "titáááá", pareceu-me mais com o Indiana Jones ou Crocodilo Dunde. Temível apenas o Vampiro Branco, que ele jura que estava atrás de uma bandeirola que decorava a pousada.

A pousada teve, além do Hélio, mais 4 hóspedes infantis: João, Gabriela, Augusto (irmão do Hélio), e uma outra menina. Na hora da partida da Gabriela, Augusto ficou triste. Minutos antes, ela, que tem meses, brincava de jogar, repetidamente, no chão a flor que o avô dava pra ela e se acabava de rir vendo-o pegar e fazer caretas com a flor antes devolver. Augusto, que completou um ano, estava elétrico querendo entrar na brincadeira. Acompanhei a saga de Guto e Gabi do varandão do refeitório, tomando suco de caju, comendo bolo de aipim e senti algo inexplicável com a cena. Fui assaltada com a sensação de tranquilidade e de certeza de que serei e estou pronta para ser mãe. Sem dúvida mesmo depois de ter virado uma balzaquiana e com o aviso dos búzios contradizendo minhas neuras. Senti isso ouvindo a Gabriela sorrir aquele riso de cócegas e ver o Augusto rindo sem saber porque ela ria. Senti que estou pronta em Andaraí. Nessa cidade coleciono momentos ímpares.

Aprendi gíria. Gíria que é coisa dos mais modernos. Nem pense em dizer que um homem é moderno naquela terra. É sinônimo de homossexualidade. Frequentemente alguém alerta para não encostar porque "estou ficando atacado".

Vi também a primeira vez a dança da fita. Cada menina (pode ter menino também), pega uma fita e vão passando alternadas as fitas, trançando em volta do mastro e quando não mais podem fazer esse ballet colorido, vão destrançando. Divertido para quem vê, deve ser mais ainda para quem faz.

Desde o primeiro dia e a primeira noite em Andaraí, com a lua cheia, esse São João foi cheio de surpresas. Achei mais que diamante por lá esses dias. Garimpei sensações boas, novos amigos. Senti a vida, com a ajuda de todos os sentidos, lá no meio da Chapada, com suas 'ezas': incertezas, durezas, belezas, certezas e sutilezas.

Andréa Sant Anna
Enviado por Andréa Sant Anna em 01/12/2008
Reeditado em 08/05/2010
Código do texto: T1312649
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