O triângulo amoroso

O terceiro elemento que se interpõe entre dois, na relação amorosa, é como a hipotenusa a unir dois catetos do triângulo. Por isso fala-se com freqüência em TRIÂNGULO AMOROSO.

Os estudos de Roberto Da Matta, notável antropólogo social, em seu livro “A Casa & A Rua” (4ª Ed. Guanabara/Koogan), mostrando que o brasileiro tem sempre um terceiro elemento para conciliar os opostos, levam-nos a reflexões sobre a simbologia do número três. O triângulo amoroso, expressão afetiva maior do número três, do terceiro, e analisado com maestria por Da Matta, através do livro de Jorge Amado “Dona Flor e seus dois maridos”. O amante ou a amante é a síntese conciliadora do numero três.

Para entendermos que o número três é a síntese, o número relacional, o número da relação, comece pela simbologia dos números Um e Dois. O Um é a unidade que encerra a multiplicidade do mundo. Pascal dizia que “Todo o universo está contido na unidade”. Os alquimistas afirmam que Um é o todo. É a unidade suprema, o Deus. Como símbolo da integração, o Um é a divindade suprema em todas as crenças: o “Tau” dos chineses, o Pai-Eterno dos cristãos, o Brahaman dos hindus, origem e fim de todas as coisas.

Mas já que o número Um encerra a multiplicidade do mundo, esta se inicia pelo número Dois. Pelo antagonismo de posições e oposições: o sol e a lua, o amor-ódio, o conflito. Os gêmeos Cosme e Damião ou Castro e Pólux. A tese-antítese, macho-fêmea, positivo-negativo, o Yang e o Ying, Deus e Lúcifer. O número Dois é a oposição entre as partes boas e más do animus e anima, o ato e a potência de Aristóteles, a existência e a essência de Sartre, a díade, o binário, o ativo e o passivo. Em todas as religiões derivadas do mitraísmo (persas) há a passagem dualística do caos para o cosmos (“no começo era o caos”) ou o antagonismo entre o bem e o mal, desde o começo do mundo.

Esse antagonismo do número Dois exige o Três como solução. O triângulo Pai-Mãe-Espírito Santo é a integração do terceiro elemento entre os contrários. Vejamos: tese-antítese-síntese; divindades em religiões como Agni-Indra-Soma na Índia; Oanes-Bim e Bel entre os caldeus; Ormuzd-Arimam-Mitra nos persas; Sol-Lua-Terra entre os indígenas; Pai-Filho-Espírito Santo entre os cristãos. O número três resolve o conflito dogmático do indivíduo e das religiões. É o eterno retorno: “Tudo que há ou existe vem do Ser e ao Ser retorna”.

O genial Roberto da Matta transpõe, sem mencionar, a simbologia pitagórica do número três para o Brasil e para as relações amorosas. Para o antropólogo, em nosso país há sempre o terceiro elemento que concilia, o intermediário que ajeita, o amigo que resolve. O número três é o “inconsciente coletivo” do Brasil. É o jeitinho brasileiro. Da Matta, desde que estudou em “carnavais, malandros e heróis”, a malandragem, a desordem, passou a estudar os “Ritos da Ordem”, da legalidade e da seriedade dentre nós. Daí, concluiu que entre os dois extremos, surge um terceiro, no Brasil.

Para Da Matta, dentre nós, se introduz sempre um terceiro elemento: branco/preto/mulato, sim/não/mais ou menos, como se isso fizesse parte de um contrato social. “O Homem Cordial”, de Sérgio Buarque de Holanda, o “Conciliador” de Michel Debrum, da Unicamp, o “País do Carnaval” e outros epítetos que definem nosso povo são superados por Da Matta. O autor vê o terceiro elemento, no Brasil, como algo que pode ser positivado na cultura nacional.

No Brasil, ao contrário dos EEUU, não há um código dominante para todas as esferas sociais. O brasileiro é diferente conforme esteja em casa, na rua, no terreiro de umbanda, no futebol, na escola de samba, no carnaval ou na Igreja. Os estrangeiros ficam perplexos para nos entender.

A amizade é o elemento relacional, o terceiro elemento por excelência na vida brasileira. Alguém diz: “A lei não permite, mas você pode dar um jeito” ou “Quando se quer, se pode”. O Brasil tem éticas múltiplas. Há rituais para casa, para rua, para “o outro mundo”. Até na escravidão não havia uma separação clara entre dominador e dominado: havia o “escravo de eito”, o mais inferior, o “escravo da casa”, a “ama-de-leite”, a “amante do Senhor” de Engenho (descrito por Gilberto Freyre). Há uma gradação, um terceiro elemento entre o dominador e o dominado.

No campo do amor, Da Matta faz uma análise perfeita do Romance brasileiro por definição: “Dona Flor e seus dois maridos” (11ª Ed. Martins). O terceiro elemento, representando a simbologia do número três, concilia os conflitos psicológicos de Dona Flor.

Vadinho morre em pleno carnaval. Ele que era a alegria, o malandro, o maior folião, o mulherengo, o vadio, o enganador, “escolhe” exatamente o carnaval, festa brasileira, para morrer. No seu enterro, como no “País do Jogo do Bicho” – onde todas mixagens são permitidas, comparece gente de “alta” até marginalizados e malandros.

Para o autor, num primeiro instante, Dona Flor recolhe-se ao luto fechado e é significativo que Vadinho seja visto sob duas óticas diferentes por duas amigas íntimas, D. Norma e D. Gisa. A primeira, católica, o vê como homem de defeitos, mas compreensível. D. Gisa, protestante, o vê com desprezo e desdém.

Num segundo momento, Dona Flor abandona o luto e sai da casa para a rua após conselhos de suas amigas. A rua é a expressão simbólica do mundo, da liberdade. Num terceiro momento, contrai núpcias com Dr. Teodoro Madureira, doutor farmacêutico, o oposto de Vadinho: arrumado, rotineiro, “tudo sempre da mesma forma”, fiel, organizado, homem da cura pelos remédios, dos livros, das formulas farmacêuticas. Num quarto instante, aflora o conflito na mente de Dona Flor, entre Vadinho e o Dr. Teodoro Madureira. É a oposição entre o Homem da Casa e o Homem da Rua. A solução vem do “outro mundo”, com o espírito de Vadinho, compulsivamente relembrado, dando os seus conselhos.

Vadinho diz: “A casa própria, a fidelidade conjugal, o respeito, a ordem, a consideração e a segurança. Quem te dá é ele, pois o seu amor é feito dessas coisas nobres (e cacetes) e delas todas necessitas para ser feliz. Também do meu amor precisas para ser feliz, desse amor de impurezas errado ou torto, devasso e ardente que te faz sofrer. Amor tão grande que resiste a minha vida desastrada, tão grande que depois de não ser, voltei a ser e aqui estou”.

Dona Flor, por seu lado, torturada com a dúvida atroz, fala: “Por que cada criatura se divide em duas, por que é necessário sempre se dilacerar entre dois amores, por que o coração contém de uma vez dois sentimentos controversos e opostos?”.

A grande síntese do triângulo amoroso, da conciliação do conflito, é quando ela diz: “Por que optar se quero as duas coisas?” – A resposta de Dona Flor já havia sido dada, antes de Vadinho. Está à página 493, bem antes das palavras de Vadinho, à página 521.

Todo o Romance de Jorge Amado está dentro da simbologia do terceiro elemento, do terceiro, no número três. Major Tiririca dá uma festa anual em pagamento a uma promessa feita por cura de um Orixá em sua mulher. Faz favores nesse dia, como o pianista que toca na festa do Major por favores e amizade. O favorecimento, a amizade, o “dando é que se recebe” de São Francisco, são os terceiros elementos na síntese entre o legal e o ilegal. A conciliação da lei com a amizade é cultural no Brasil. O triângulo amoroso de Dona Flor também o é.

O triângulo amoroso é a solução do conflito psicológico individual, como o número três é o número da síntese, da conciliação. É o número por excelência do brasileiro. Nosso povo, nossos homens e nossas mulheres não sabem viver sem o terceiro. Toda “Flor” precisa de um “Teovadinho”. Todo “Teo” precisa de uma “Florvadinha”. Todo “Vadinho” precisa de uma “Flor-Teo”.

Maurilton Morais
Enviado por Maurilton Morais em 31/03/2006
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