O MORTO
No asfalto quente e rachado, a refração dança diante dos olhos de quem se atreve enfrentar as crateras fumegantes espalhadas pelo chão. Tudo é silêncio. Uma pasmaceira de morte, nem os pássaros cantam, nem as flores se abrem. Apenas o  badalar de um sino quebra a modorra do dia anunciando a morte de alguém. E de boca em boca a mesma pergunta: quem morreu? Na capela mortuária tem um corpo rijo, deitado dentro de um caixão, coberto com flores de tecido embebidas numa essência de lavanda, usada para disfarçar o cheiro da morte.  Não conseguindo conter a curiosidade, enfrentei o sol calcinante e me dirigi à capela. Lá chegando, olhei detalhadamente o rosto do morto. Curiosamente parecia feito de cera e os olhos meio abertos, tinham aparencia gelatinosa. Os lábios colados, mantinham-se unidos e repuxados criando um semirriso na boca seca. A barba feita às pressas, deixou um caminho de pelos para lá e para cá, demostrando a imprudência ou impaciência, do barbeiro papa defunto.  Foi, então, que observei o nariz!...  Ah, o nariz do morto. Infelizmente deixaram aquelas bolotas de algodão aparecendo e avolumando as asas do nariz aquilino do falecido. E alguns pelinhos que, insitentes, faziam a vez de antenas de insetos, de tão grandes que eram. Alguém devia ter tido a misericórdia de apará-los. É lastimável chegar aos portões do Paraíso, ficar frente a frente com São Pedro tendo aqueles “pelinhos” saindo das narinas entupidas com bolotas algodão. Mas o morto está morto e não pode protestar. Não pode rir das piadas sem graça ou mesmo ser solícito com a viúva e seu choro de gato asmático. Não pode descruzar os dedos, soltar as mãos e espantar aquela mosca zombeteira que passeia solene pelas bochechas amarelecidas parando vez ou outra, para esfregar as patas. Todos vêem a mosca, mas ninguém faz nenhum gesto para espantá-la. Ficam  cochichando entre uma olhada e outra para conferir a cara do morto. Uns dizem que ele, o morto, era “crente” e não podia estar com velas acesas nos quatro cantos do caixão, nem o enorme crucifixo  dourado norteando a sua passagem para o além, mas a viúva não diz nada e continua com seu choro fino enquanto na copa, as mulheres preparam o lanche para a “virada da noite”.
De repente o aroma de café fresco que mais parece chá, de tão transparente que é[fraco e doce] e o incontestável cheiro de mortadela com pão. Uma criança derruba o pão. Senta-se no chão de ladrilhos vermelhos e respingados de cera de vela, apanha o pão e a mortadela e come tranquilamente sob o olhar indiferente da mãe. De onde eu estou, fico pensando - filho de pobre é imune a quaisquer micróbios até mesmo os de capela mortuária! – rsrs. De repente o ronco forçado de um motor, anuncia um carro subindo a ladeira ainda na primeira marcha.
Chegam na perua Rural azul e branca, o Pastor e os obreiros para resgatar a alma do “irmão desviado” e garantir o seu lugar no céu. As “irmãs” aglomeram-se ao redor da viúva dando a árdua tarefa de fazê-la parar de chorar e confirmar que o morto pertencia à irmandade para que se pudessem retirar as velas e o crucifixo e salvar a alma do pobre das labaredas do inferno. Ela, a viúva devia acertar os dízimos devidos à igreja, garantindo assim, a entrada segura do morto no Condominio Celestial com direito a ruas de ouro. A mãe do morto que assistia tudo silenciosamente, em determinado momento se levanta calmamente, anda até o pastor, abre sua Bíblia e retira um papel encardido e dobradinho entrega ao pastor dizendo que aquela era a passagem de filho morto, para o reino do céu - certidão de batismo na igreja católica. Fez-se um silêncio total e se podia ouvir o zumbido da mosca voando sobre o rosto do morto. O pastor tenta argumentar, mas a entrada do padre o deixa desarmado. Ficam frente a frente padre e pastor. Ninguém ousa dizer nada, a não ser uma criança chorasa pedindo mais “mortandela”. O padre usando clérgima e batina preta, aproxima-se do morto, abre a sua maletinha retira a Bíblia e o hissope e começa aspergir água benta sobre o caixão, virando a mão para todos os lados, atinge com água benta, o rosto do pastor e de algumas obreiras que estavam perto. –“Ô pastor Eládio, mil perdões, mas me parece que o Todo Poderoso pressentiu a sua “secura” e resolveu dar de beber a quem tem sede”. Depois disso, eu olhando lá de cima, da varanda da capela mortuária pude ver que a lanterna traseira da velha Rural estava queimada enquanto ela descia a rua sacolejando nas crateras do asfalto precário. A noite se arrastou entre risos abafados, piadas sem graça, choros, cheiro de velas, cheiro café e “mortandela”. E na manhã seguinte o morto foi enterrado com os dedos cruzados sobre o peito e um risinho diferente nos lábios.




 

 

Luciah Lopez
Enviado por Luciah Lopez em 15/12/2008
Reeditado em 02/11/2021
Código do texto: T1336459
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