A CRÔNICA DOS MEUS NATAIS

Não me lembro de natais antes dos meus 11 anos!

Há um branco na minha memória.

Em nenhum momento alguma ceia, reunião, parentes, amigos, nada, nada me vem à lembrança. Para mim é um mistério!

Só consigo me lembrar de uma cozinha de brinquedo que ganhei antes dos 11 anos. Era uma caixa retangular que, aberta no sentido do comprimento, virava uma cozinha de ladrilhos azuis e brancos, com uma prateleira onde ficavam os caldeirões em cima e as panelinhas e frigideiras penduradas em ferrinhos. Havia um desenho de fogão. Foi a coisa mais linda que ganhei! Depois, quando Papai foi buscar a mudança para começarmos vida nova em outro lugar, essa cozinha não foi junto! Virou lenda!

Lembro-me também de um coelho de orelhas longas, charmoso, do tamanho dos meus braços de menina, tinha roupinha, calça e camisa, sapatos e um sorriso permanente na cara de narizinho vermelho e dentes grandes! Também sumiu nessa mudança. Também virou lenda! Eu amava aquele coelho! Nunca mais o vi!

Acho que Papai não gostava do Papai Noel que me deu aqueles brinquedos...

Depois, fomos para bem longe, para um lugar onde ele pensava que restauraria sua vida, sua dignidade, mantendo longe “aquele” Papai Noel indesejado... Coitadinho dele, não deu certo! Restaram-lhe as meninas e a ferida em seu coração. Mais tarde, ele conseguiu perdoar, mas nunca se esqueceu!

Como eu nunca me esqueci da minha cozinhinha e do meu coelho!

A partir daí, lembro-me dos natais em casa de minha Titia Tiná, irmã de minha mãe, onde passei a morar.

Fazíamos um presépio no começo de Dezembro. Ela e eu armávamos um papel grosso, da cor de terra, no canto da copa, no lugar do filtro de água, pois tinha um monjolo que funcionava com a água do filtro e escorria por um buraquinho da parede para o quintal.

As dobras desse papel pintado de marrom terra formavam colinas, campinas, caminhos, cheios de pequeninas vegetações e por onde se esparramavam pastores, ovelhinhas, criancinhas, mulherinhas, todos virados em direção ao centro daquela paisagem: a manjedoura, colocada numa gruta da dobra do papel, onde ficavam Maria e José, os anjos dependurados, a vaquinha e o burrinho e a estrela prateada com rabo de cometa...

A cada dia, eu era incumbida de movimentar as figurinhas para dar sensação de movimento. Todos deveriam ir se aproximando bem devagarzinho daquela gruta bem feita, onde ficava a manjedoura...

O pequenino Menino Jesus, somente chegava à meia noite do dia 24, quando reuníamos em frente ao presépio. Titia orava o Pai Nosso e a criança mais nova da casa vinha lá de dentro carregando com toda honra o pequenino Ser de nossas orações. Titia o colocava em seu bercinho de palha. Depois eu me sentava ao piano tocava “Noite Feliz” e todos nós cantávamos. Somente, então, começávamos a ceia.

E na ceia só podia ter “capeletti”, a nossa comida tradicional, a galinha assada depois de servir para o caldo do capeletti, as frutas secas e o vinho para os mais velhos e a “sangria” para os novos (vinho com água e açúcar, bem fraquinho).

Titia fazia a massa dos capeletti, nós todos colocávamos recheio (carne de boi e de porco moídas junto, com temperos onde imperava a noz moscada), dobrávamos formando pequenos chapéus de bispo e Papai ia colocando, um a um, em outra mesa forrada de toalha branca. Ele colocava tudo simetricamente! Era sua obra prima! Depois contava. Aprendi com ele a contar as duas filas, horizontal e vertical, para chegar tranquilamente ao resultado. Eram 750, 800 capeletti de cada vez!

Depois, no fogão à lenha, num enorme caldeirão onde cozinhava a galinha recheada durante um tempão, os capelettis eram colocados para cozinhar. O recheio dessa galinha era um segredo de família. Só muito mais tarde fui descobrir.

Querem saber? Miolo de pão umedecido em leite e vinho, misturado aos “miúdos” da galinha, castanhas cozidas, nozes e uma fartura de temperos! Eu achava muita graça na forma como Titia costurava o buraco feito no traseiro da galinha, para conter o recheio! Ela era caprichosa até nisso!

A sobremesa sempre, sempre, era a famosa e deliciosíssima "raviolla". Pastéis recheados de doce de abóbora com castanhas, postos a cozinhar em calda de açúcar com canela e cravos!

Coisa de louco! Comida italiana!

Quando ia me deitar, colocava meus chinelinhos ao pé do presépio e pela manhã sempre havia um presente neles. Depois, já mocinha, encontrava o presente no chinelo, mas ao pé da minha cama. Lembro-me de ganhar um sonhado maiô cor de rosa, afinal eu era muito boa em nadar no Rio Uberabinha e atravessá-lo pela correnteza...

A partir do dia 25, apareciam no presépio os 3 Reis Magos que também iam, dia a dia, seguindo pelos caminhos daquela montanha para chegarem ao pé de Jesus Menino no dia 6 de Janeiro. Aí acabava a tradição.

No dia seguinte, com calma, cada figurinha, cada casinha, árvores, arbustos, monjolo, eram enrolados em papel de seda e acondicionados na velha caixa do presépio que iria para cima do guarda-roupas da Titia Tiná.

Jesus iria dormir até o próximo Natal.

Depois fui embora para outras terras com Papai e minha irmã... Bem depois me casei, porém ia todo fim de ano para a casa dela com o marido e um, após dois, três e assim até completar seis filhos... E aí... Mais tarde fiquei sozinha com os filhos, mas continuei indo.

E a festa era a mesma.

Muito depois, a vida não me permitiu mais viagem tão dispendiosa e passei a fazer a festa dos presentes com minha mãe e os meninos. Contudo, não houve mais capeletti, galinha recheada e assada e tudo mais... Só a brincadeira de procurar os presentinhos pela casa...

Perderam-se no tempo os natais passados. Passaram...

Agora, que a maior parte dos filhos está casada e com filhos, de vez em quando se reúnem em minha casa.

Não há capeletti, cada família traz uma comida gostosa. Brincamos de “amigo invisível”, divertímo-nos com os pequeninos que enchem a casa toda e o Natal acaba...

Já aconteceu de passar um Natal completamente sozinha, somente com as lembranças e a saudade dela e dos meus filhos.

Já não há presépio, Titia Tiná foi para o Céu, sua casa não existe mais... A caixa das figurinhas? Não sei onde foi parar, com qual dos filhos dela ficou...

Aqui, nesta caixa que se chama coração, ficou a gratidão pelo amor que ela me deu ano após ano, pelo carinho por aquela menina de 12 anos carente de afeto e tão secretamente triste.

Aqui, em meu coração, ficaram as lembranças de tudo e de todos os natais, menos os de antes dos meus onze anos!

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 23/12/2008
Reeditado em 21/03/2009
Código do texto: T1350591