Passei minha vida que foi, todinha acompanhada do meu pai-avô João. Hoje ele ainda me acompanha e vocês vão ver porquê.
No jardim da praça onde morávamos, todas as manhãs, quem por ali passasse, veria um homem com uma vareta lisinha e um quase bebê que já andava e começava a falar. Ele riscava na areia da praça um A eu repetia. À noite, a aula continuava: na gigante mesa de madeira pura da copa, ele espalhava farinha de mandioca e com o indicador fazia um B. Eu, em seu colo, balançando as perninhas, repetia: Bê!
Cresci vendo-o no hall de casa, conversando com mendigos, loucos e dando moedas e balas ás crianças.
Quando ele dizia hum! (rum) queria demonstrar que não gostou, mas aceitava, ele aceitava tudo da vida: a alegria, com festa; a tristeza com resignação.
Lembro que certo dia, um recente namorado me chamou no portão, minha prima foi atendê-lo e voltou para me avisar. Meu vô foi em seguida, olhou para ele “de cima a baixo” e voltou murmurando “Rum”. Acontece que o rapaz trazia resquícios dos hippies: cabelo grande, sandália “sarga bunda”, bata branca meio encardida, calça folgada e meu vô, claro, não gostou. Mas mesmo assim o namoro foi em frente (mas isso o é outra estória).
O tempo passou e há muito o que contar, mas vou resumir.
Uma vez, chegando à noite, do trabalho vi uma mulher com um bebê sentada no passeio. Pediu que eu fizesse um mingau para o filho que tinha dois meses. Aconteceu que meu vô a convidou a entrar e lá ela ficou até a criança ficar com quase um ano. Mas ele dizia:- um dia ela nos deixa e dias depois, quando acordamos não estavam mais lá, ele entristeceu, jogou fora o carrinho que comprou para o bebê e seguiu em frente.
Adoeceu com 85 anos, pela primeira vez, foi internado, operado. Certo dia entrei em seu apartamento, que estava cheio de crianças (como entraram ali, não sei). Coloquei-os para fora e ele disse: - não faça isso, minha filha, eles vieram buscar a moeda do dia (ele tinha uma bolsinha de brim cheia delas). Senti uma baita compaixão por ele e um enorme amor e sinto tudo igual a cada dia que lembro.
Depois da cirurgia, fomos ao Rio para o ano novo e ele disse: “esta é a primeira vez que vejo o sol nascer na praia, depois de ter bebido cerveja sem colarinho”. Ele era assim, seguia o mundo, adaptava-se a tudo o que acontecia. Quando voltamos, uma vizinha me confidenciou que minha prima estava grávida. Como contar a ele? Esperei uma ocasião: - Vô, tenho uma coisa para lhe dizer:
– Já sei. Ela está grávida, é mais uma pedra em meu telhado, disse.
Ele adivinhava, profetizava, amava, perdoava, compreendia, aceitava. Mas sofria.
Certa vez um importante documento desapareceu do meu local de trabalho. Reviramos tudo e ele TINHA que aparecer. Cheguei triste e cansada em casa. Ele ouviu tudo e disse: amanhã ele vai estar dentro da sua gaveta.
E não é que estava?
Nem tudo o que ele me ensinou sempre faço, mas jamais esquecerei aqueles lisos, macios e alvos cabelos.