Em busca da herança

Depois de muita insistência, filha e neta convenceram-na a viajar para Foz do Iguaçu. Conhecer as cataratas, pisar em solo argentino e se esbaldar em compras no Paraguai. A viagem rapidamente transformou-se em sonho. Em três semanas, após guardar dinheiro da aposentadoria, de receber de uns devedores, de cobrar alguns aluguéis, de raspar a poupança e de se desfazer de uma velha máquina de lavar roupa, comprou uma imensa bóia, pés de pato, maiô, óculos de mergulho, quatro vestidos, um chapéu e uma mala. Em sua primeira viagem ao exterior (o Paraguai não era outro país?), não poderia sair vestindo qualquer coisa.

Intrigada com o comportamento da filha e da neta que nem lhe davam bom dia, dormiu mal na véspera. Por que queriam que ela viajasse para Foz do Iguaçu? No dia da viagem, despediu-se da outra filha, dos amigos e do namorado pela terceira janela do lado do motorista.

A viagem transcorreu tranquilamente. Durante as três ou quatro paradas programadas para ir ao banheiro, comer, telefonar ou esticar as pernas, desconfiava das amabilidades da filha e da neta, flagradas cochichando pelos cantos.

Os receios aumentaram quando o ônibus circundou o parque das cataratas. Uma caminhada rápida, assegurou o guia.

No alvoroço, ninguém percebeu a maneira delicada, mas muito persistente com que a filha sugeriu que trocasse os sapatos.

- Os meus sapatos estão bons! Não preciso trocar.

- Mas a senhora vai trocar, mamãe. Ah, se vai... E vai trocá-los agora!

Sob fortes protestos, calçou uma sandália de saltos altos (quinze centímetros de altura). A neta, sentada no banco de trás, testemunhava as traquinagens da tia e, por algum descuido decorrente de uma alegria inexplicável, soltou uma risada tão alta que deixou a avó ainda mais apreensiva.

A neta não quis esperar o andamento regular da fila. Olhou a janela, olhou a avó, não pensou cinco vezes. Filha e neta desceram do ônibus comemorando, mas se decepcionaram ao constatar, pendurada numa árvore, a simpática dama que teimava em não passar para lá do Cabo da Boa Esperança.

Mais adiante, o salto de quinze centímetros deslizou pela calçada de azulejo, deixou no chão uma senhora que se segurava numa bengala, deu uma cacetada num menino de oito anos e, por milagre, parou entre o parapeito e a densa floresta.

- Ai, meu Deus! Mas será que não vai dar certo?

- Vai ter que dar, tia. Vai ter que dar.

Se o vôo pela janela e o salto alto de nada adiantaram, se livrariam dela na passarela.

- Quando chegarmos lá, disse a sobrinha, pedimos para se afastar para tirar uma foto.

- Quando estiver longe, damos um jeito de ela olhar para trás. Quando se virar, vamos lá e a empurramos. A correnteza faz o resto!

As duas sorriram, apertaram as mãos e silenciosamente maquinaram o que fariam com a herança mencionada numa carta recebida alguns meses atrás. Um tio da avó falecera, não deixando nem filhos, nem esposa, nem outros herdeiros. A avó receberia trezentos alqueires de terras produtivas no centro do Paraná. Quando descobriram a carta jogada sobre a mesa – a avó nem tivera tempo de abri-la – decidiram imediatamente se livrar da velha.

O grupo de turistas venceu a trilha íngreme, chegou à passarela ao extremo da qual filha e neta pediram para se posicionar sem segurar no corrimão. Uma foto para mostrar aos amigos.

A avó tirou uma moeda do bolso, jogou na água e pediu sorte. Ajeitava o cabelo e procurava os óculos escuros na bolsa quando a neta gritou que um tucano passava às suas costas. A avó virou-se, mas antes de olhar para cima abaixou para pegar a moeda que ficara presa na passarela. Nesse instante, filha e neta, como foguetes desesperados em busca do alvo, voaram por cima, caíram na água e pararam seiscentos metros adiante.

De volta para casa, a avó alegre ao fim da faxina:

- Mas não é que eu tive sorte com a moeda de Foz? Acho que guardei esse papel e nem lembrava. Vibrante em sua mão, o comunicado da herança, escondido desleixadamente em cima do guarda-roupa.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 15 de janeiro de 2009.