Linha Cruzada

- Alô?

- Alô? Quem fala?

- Sou eu.

- Ahh! Sim! Estou subindo ai! Um instante!

A linha é desligada.

Trabalho a cinco anos numa mesa de transferência. Eu intercalo ligações, tudo bem que é um jeito ultrapassado, mas num prédio tão antigo como esse, creio que nunca pensaram em algo mais moderno. Também creio que é um jeito do sindico saber mais ou menos o que se passa com os moradores. Toda ligação para o interior do prédio passa por esta mesa, quando alguém liga, por exemplo, do 321 para o 522, as luzes destes respectivos números acendem, daí meu trabalho é plugar um no outro. Posso ouvir toda a conversa pelos fones de ouvido e se quisesse digamos que interferir na conversa bastaria falar no microfone a minha frente.

O microfone a minha frente está quebrado há uns 12 anos pelo que o sindico falou.

Além de mim há outra pessoa, ela pega o turno diurno e eu pego o noturno.

- Alô?

- Silvia?

- Sim, ela quem fala.

- Silvia, teu marido está novamente no 677.

- Ótimo, chego num momento.

A linha é desligada.

Tal prática é ilegal, creio. Ganho bem para ficar de bico calado... Creio.

- Pode trazer... Estou com o dinheiro...

- Certo, esta é da boa...

- Espero!

Sou como um núcleo de informação perdida, sinto-me na vida de cada pessoa, sei de cada segredo dela, sei de cada palavra que ela fala através do telefone, sei de todos os relacionamentos, de tudo que ela faz de dia, tudo que ela faz de noite pois o ser humano sempre tem que comentar fatos de seu âmago para alguém pois, não teria sentido ter segredos se não pudesse repassar-los para alguém, via telefone.

- George, eu te... Eu te amo.

- Eu sei Miguel...

A linha é desligada.

- Eu digo que não bebo mais, mas espero apenas ela sair.

- Eu vendo vodka, se quiser...

Todos tem um segredo, eu sei todos os segredos. Tal poder me transforma num deus perante a eles, tal poder poderia fazer-los se ajoelharem diante de meus pés, tal poder poderia fazer-los me darem tudo que tem pois eu tenho todas as conversas aqui.

E as gravo.

Já li numa revista em quadrinhos que “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”. Aristóteles não teria pensado nisto. Eu tenho um grande poder, mas até onde tenho responsabilidade...? Todo este poder me faz pensar: Estamos seguros? Nossos segredos? Nossos dados pessoais? Nossas fantasias? Penso que se uma mesa de linhas pode revelar segredos dos quais todos temem a serem revelados e os celulares? E a própria internet? O que me garante que não há ninguém olhando para nossos rostos por nossas webcams? O que nos garante que não nos observam por satélites do qual podemos baixar seus programas pela internet? O que nos garante que os celulares não estão grampeados e as coisas que dizemos nas madrugadas não estão sendo gravadas? O que garante que não há nada ou ninguém bisbilhotando em nossos e-mails, em nossas conversas via rede? O que garante que não há um deus da informação sigilosa que sabe de tudo?

- Sabe, eu sei com quem Mirella tem um caso.

- Com quem...?

Eu também sei com quem Mirella tem um caso...

- Alô? – falo com o microfone que comprei por 14,99.

- Alô? Quem fala?

- A Sra. Mirella está?

- Sim, ela quem fala.

- Sra. Mirella, gostaria de dizer que sei um segredo teu, sobre o caso que você tem. Agora se quiser ouvir meu silêncio terá que me pagar...

Tenho um grande poder, mas quem disse que teria uma grande responsabilidade?