O MAR

Estavamos todos ali a mesa para celebrar a amizade, as coisas em comum, boas e ruins, a cervejinha gelada e o petisco fatiado.

O assunto era Obama, o improvável.

Nosso amigo Wilson falava sobre o presidente americano que toma posse hoje com satisfação, alegria mesmo, como alguém que se refere a um membro da familia que dá muito orgulho.

Já ouviu, alguém de voces, que às vezes surge para o momento que vivenciamos, assim do nada, uma trilha sonora como num filme que somente a gente vê e ouve?

Pois foi assim.

O rosto negro do meu amigo era todo sorriso, seus dentes brancos na face magra, vincada com as primeiras rugas, era todo luz.

Ele acariciava o copo suado de cerveja com o carinho, revelando pensamentos de confiança, como quem afaga o braço de um amigo que pode sempre contar.

Foi este gesto que talvez, colocou em movimento na memória a trilha sonora que tocou só pra mim:

" Em algum lugar além-mar

em algum lugar por mim esperado

está minha amada na areia dourada

a olhar os barcos que partem para o mar..."

Trompete e pistão, musicalidade de "La mer", (Beyond the sea), composição de Bobby Darin, versão de Charles Trenet.

"Em algum lugar além-mar

Lá está ela a me esperar

se eu pudesse voar como os pássaros no céu aberto

iria direto para os seus braços..."

O rosto do meu amigo Wilson fundiu-se ao distante e desconhecido Obama.

"É longe

Além das estrelas

Muito além da lua..."

Olhei para aquele rosto fundido, agora um só, em que as semelhanças e desigualdades se sobrepunham a pele, ao sentido, ao histórico de violência e sofrimento, a vontade, a vivência, e, talvez, alimentado por todas estas coisas, os mesmos ideais - o amor distante.

"Eu sei

além de qualquer dúvida

meu coração vai logo me levar lá..."

Um dia o oceano não será separação, nem ameaça intransponível.

"Vamos nos encontrar

além da praia

vamos nos beijar como antes

seremos felizes além-mar

e nunca mais

vou sair pra navegar..."

A orquestra imaginária tocou os acordes finais e voltou ao início para o cantor invisível repetir os refrões.

Nem sei mais o que meu amigo dizia, nem sei mais que qualidade de Obama lhe dava mais orgulho.

Nem quero saber, porque podem se perder no futuro, como frágeis barcos que enfrentam a fúria do mar.

A mim interessava apenas, e ainda interessa, o sorriso largo, a face bonita, a alegria, corpo e espirito, formando um casal que dança junto a música que tocava pra mim.

E este casal negro fazia, um ao outro, votos de fé e de esperança:

"E nunca mais

eu vou sair pra navegar..."

Se Obama nos decepcionar, se ele nos trouxer desilusões, mesmo assim terá cumprido o seu destino e nada estará perdido.

Restará o sorriso de larga auto-estima do meu amigo e todos os seus irmãos negros.

E um refrão que não cansa de repetir:

"Seremos felizes além-mar..."

Araçatuba-SP, 20/janeiro/2009

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Obrigado pela leitura.