Antropofagia

(como ando muito preguiçoso, vai um texto antigo)

Sem muita complicação teórica, nos faz imaginar banquetes de tribos longínquas, festejando a derrota de algum inimigo, assim como fazemos no dia em que nosso time do coração ganha de algum incauto rival. A diferença parece ser a nossa preferência pela carne bovina, apesar de “o silêncio dos inocentes”, nos alertar sobre outras possibilidades.

A antropofagia primitiva é cultural. Aqueles horripilantes canibais, dão um significado social ao seu banquete. (me perdoem os antropólogos a ausência de rigor conceptual). Ao degustar o inimigo, incorporam a sua força física e “espiritual”. A ingestão de valorosos guerreiros é renovação de vigor e serve a um propósito coletivo, a preservação e integração da vida social.

A antropofagia moderna é civilizada. O impulso canibalesco passa por processo de socialização, que o reprime e canaliza a sua energia para atividades meritórias, garantindo a existência social livre da manifestação direta de tão repugnante desejo.

Plagiando Freud, os impulsos são indestrutíveis, os mecanismos repressores não são eficientes o tempo inteiro e, por isso mesmo, volta e meia, há uma composição de compromisso, para que os impulsos possam satisfazer seus apetites mais selvagens, sem destruir literalmente o outro e não por em risco o próprio organismo, nem a sociedade.

Não é o caso do canibalismo moderno psicótico. É alheio à dimensão cultural. O processo de devoração do outro não implica perspectiva de incorporação de valores, busca por integração social, muito menos preocupação com sobrevivência coletiva. É mecanismo regressivo à uma situação de não-integração original, período onde nada existe – só o insaciável canibal.

As manchetes ocasionais de jornais e o filme lembrado costumam divulgar exemplos ilustrativos.

Mas é o caso do canibalismo moderno neurótico. Não está à margem da cultura. Aliás, bens e valores culturais são estímulos para despertar a ira do impulso tenazmente reprimido; revelar perspectivas de gozo mais alucinante ao impulso frouxamente sublimado. O processo de destruição do outro, também, não implica introjeção de valores, busca de integração cultural, nem tampouco preocupação coletiva. É mero mecanismo de negação de vivência desintegradora insuportável reviver frente ao outro.

A destruição se dá de forma civilizada. A aniquilação do outro se realiza no despojamento do seu prestígio, no menosprezo por sua perícia, no desprezo das suas experiências, na suspeita ignóbil de seus valores.

A antropofagia civilizada é diuturnamente exercitada no cotidiano.

Preste atenção às mudanças de comando; às demissões insuspeitas; ao “gelo” em pretendentes à ascensão; às concorrências desleais; às competições fraudulentas, etc. e verá com que voracidade o canibal civilizado destrói suas presas desavisadas.

Ai sim, pode-se ver que a diferença entre o canibalismo primitivo e o civilizado não é só a preferência pela carne bovina.

A diferença fundamental é que o primitivo deseja e glorifica o seu banquete, por isso o incorpora, enquanto o canibal civilizado inveja e menospreza o seu, por isso o destrói.

João dos Santos Leite

Psicólogo - CRP 04-2674

Ituiutaba – MG,11/10/2002

Joao dos Santos Leite
Enviado por Joao dos Santos Leite em 23/01/2009
Reeditado em 02/02/2009
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