'O DIA EM QUE FUI CONVIDADO PARA MORRER'

Estava uma noite agradável, naquela distante época, onde ainda não se falava nem em happy hour, passei num restaurante onde sempre encontrava alguns amigos.

Naquela noite, uma pessoa que outrora eu já havia considerado como amigo e trabalhado junto, mas que estava se perdendo na bebida e no jogo, mas ainda tinha poder financeiro, mantinha em volta de si uma matilha que ele considerava como amigos.

Tempos antes eu tocava, no período da noite, um bar lanchonete, que era de propriedade de meu irmão. Era de bom movimento e onde eu ganhava os clientes de noite e o meu irmão os perdia durante o dia.

Era mais um dos meus pequenos bicos onde eu ganhava o meu sustento sem precisar me empregar. Eu não tinha uma remuneração definida, mas conforme o combinado eu retirava no final da semana a parte que me cabia, conforme o faturamento semanal e sem precisar prestar conta.

Foi lá que eu conheci este amigo. Ele vinha com companheiros de trabalho de uma cia. de seguros já que era um corretor.

De tanto freqüentar o local começou a me convidar para ir trabalhar com ele nas tardes. Viu em mim uma capacidade de negociador que ainda não me era consciente.

De tanto insistir nos convites, resolvi um dia lá ir, meio reservado, pois já estava acostumado a trabalhar sozinho desde os vinte e um anos.

Mas fui, um tanto encabrunhado de ver tanta gente junta, mas começamos a trabalhar. O trabalho foi rolando e eu fui me dando bem, fechando negócios onde eu tinha uma participação.

Nesta altura o meu irmão vendeu o bar e este passou a ser o meu melhor rendimento. Passaram-se uns seis meses e aí começaram os problemas. Ele só me dava os piores negócios, mas mesmo assim eu fechava, e começou também a atrasar os pagamentos.

Ele era um bom pagador de despesas nas saidas noturnas, então tinha sempre alguns indivíduos em volta dele e, lógico,  não eram do melhor caráter.

Talvez tenha vindo daí alguma influência negativa com relação a mim e chegou um momento em que não deu mais para trabalharmos juntos, mas como eu já havia aprendido os segredos da profissão, iniciei a minha carreira solo, na mesma empresa, como profissional liberal e fui crescendo, enquanto ele continuava a sua decaida.

Naquela noite, naquele restaurante, ele me convidou para sentar na sua mesa, alegando que, embora não trabalhássemos mais juntos, não tinha ‘do porquê’ de não continuarmos amigos. Eu assenti.

A noite foi rolando e, lá pelas tantas ele propôs: Porque todos nós não íamos a um outro local, dele conhecido, e a caminho da sua casa, e passarmos mais algumas horas, naquela noite tão agradável já que muitos moravam por aquelas bandas mesmo?

Todos toparam e para mim seria ainda uma carona já que minha morada ficava no caminho por onde ele passaria para ir embora.

Era um estabelecimento de  bairro e naquele instante estava com pouco movimento, e, durante a brincadeira jogando truco, a conversa começou a tomar outro rumo e eu comecei a sentir que estava em uma situação planejada.

Os outros foram indo embora numa sequência não costumeira, e eu fui ficando sozinho com aquele cara que foi falando disparates.

Não adiantava argumentar, ele já tinha vindo com idéia fixa, e depois de muito falar disse que dali eu não sairia com vida.

Eu estava sentado num banco, encostado de costas para o balcão e ali fiquei estarrecido vendo o que estava acontecendo, pois apesar de tudo, o tinha em boa consideração e era agradecido a ele pelo horizonte que me abriu.

Ele solicitou ao dono do estabelecimento a sua valise, onde eu sabia que tinha uma arma.

Olhei para o dono do estabelecimento e constatei pela sua frieza que ele também não estava do meu lado a par do plano. A valise foi colocada no balcão e eu ali, letárgico, imóvel.

E o meu ‘ex-amigo’ pegou a valise e começou a programar o segredo, naquelas pequenas roldanas, e eu ali naquele banco sentado e, não por coragem, não sei, talvez por vergonha de sair correndo, só sei que fiquei ali aguardando.

E ai ele começou a girar aquelas roldanas, girava, girava, girava e girava e pela demora eu vi, contra todas as evidências, que ali não seria o meu fim.

Como eu não corri eu o encostei na parede e ai faltou coragem a ele, o que não teria ocorrido se eu saisse correndo, com certesa ele teria feito alguns diparos em minha direção e cantaria de galo depois para a sua turma.

Mas com a minha atitude ele empurrou a valise para frente, arcou levemente a cabeça sobre o queixo e colocou as duas mão largadas no balcão e não falou mais nada. Eu tinha vencido.

Ai eu dei uma olhada para o dono do bar, que não me olhou, e me levantei normalmente, e sai para a rua, iniciando uma caminhada de uma hora, em direção da minha casa.

Não me lembro de ter me sentido antes tão leve e livre na minha vida e, principalmente, tão acompanhado invisivelmente, como naquela minha caminhada.

Sinto hoje que ali, naquele momento, a minha vida tinha passado por uma transição importante.

Continuei me desenvolvendo na profissão e me tornei um profissional considerado.

Até que chegou um dia, após alguns anos, ao passar pelo andar do meu escritório que continuava no mesmo prédio que o dele, aquele meu ‘ex amigo’, que nunca mais eu tinha tido nenhum contato, entrou e veio a passos firmes em direção da minha mesa, que ficava no fim da sala, perto da janela.

Eu apenas relaxei e achei que tinha chegado a minha hora, pois nem teria o que fazer mesmo, mas, para minha surpresa, numa situação insólita, ele perguntou se eu podia lhe emprestar algum dinheiro e eu respondi secamente que não emprestava dinheiro, e ele dando meia volta saiu imponente como tinha entrado, pois a imponência era a única coisa que tinha lhe sobrado.


"Não é o lugar em que nos encontramos nem as exterioridades que tornam as pessoas felizes; a felicidade provém do íntimo, daquilo que o ser humano sente dentro de si mesmo” Roselis V Sass (graal.org.br)