EIA, VIDA!

No coração da fazenda, o aboio plangia. Era a voz do carreiro que ressoava tal como hoje ecoa na alma. Uma voz distante e sozinha... Mas presente. Eia, Ilusão!

Lá ia o carro gemendo. Eram férias de julho e, nós crianças, acompanhadas de nossos pais, seguíamos pra fazenda de meus avós paternos em Marilândia. Avós ansiosos esperavam a família que, apenas de ano em ano, aparecia por lá.

Tomávamos a Maria Fumaça em Bom Sucesso rumo à estação ferroviária do lugarejo, não longe do arraial. Não dormíamos na véspera, ou melhor, dormitávamos aquele sono “picado” de criança que espera algo muito importante acontecer no dia seguinte. Conosco não era diferente.

Curtíamos a viagem na medida do possível, até o ponto em que a ansiedade da chegada não atrapalhasse aquelas horas da longa viagem, mais de três horas de pura expectativa! Eia, Esperança!

O melhor estava por vir. O carreiro da fazenda e meu padrinho colocava colchão de palhas forrando o carro de bois. Era gostoso aquele farfalhar das palhas, entremeado com a voz dele vencendo as distâncias. Aproveitávamos cada segundo da viagem até a casa grande. Essas lembranças chocalham na mente, principalmente a de avistar o casarão que despontava azul como um sonho mágico, repleto de janelas, com seu alpendre frontal de ponta a ponta, onde todos se reuniam às tardes para ouvir os “causos” e curtir o ocaso. Eia, Ditoso!

A casa era enorme e, no grande salão, havia um relógio de parede que tocava bonito, para depois fazer soar as badaladas precisas, uma pontualidade de décadas! O som do relógio ainda hoje povoa minha mente como um clamor de imensa saudade, bem como o barulho dos passos sobre o assoalho de largas tábuas.

Defronte à sede havia um largo, onde os peões ou mesmo os da família arriavam ou desmontavam de seus cavalos, ao pé da escadaria rumo ao alpendre no alto. Inesquecível o passeio a cavalo com meu pai, firme e experiente, segurando a rédea com uma das mãos e apoiando o corpo da gente com a outra. Enquanto os adultos conversavam sentados nos grandes bancos de madeira, as crianças preferiam sentar-se nos degraus, programando passeios e travessuras.

Lembra-me o dia que meu pai matou um porco. Fiquei impressionada com a atitude dele, pois, na minha cabeça de cinco anos, ele não seria capaz de matar um animal, porque sempre amou os cães e outros bichos. Fugi pro fundo da horta, tapando os ouvidos com as mãos pra não ouvir os berros dele. Só voltei quando ele já estava estendido no chão, coberto de folhas secas de bananeira, para chamuscar a pele. Iniciada a produção de lingüiça e chouriço, me esqueci do aperreio daquela morte, que ficara para trás.

Havia no fundo do quintal uma fonte de águas limpidíssimas, onde se lavavam as roupas da casa e se enchiam as moringas para o uso doméstico. Ao lado, a casa dos queijos, onde havia vários deles sobre as prateleiras, alguns em fase de cura, outros no balcão sendo preparados nas formas, uma abundância de dar gosto.

Tudo era farto. O pomar repleto de árvores frutíferas de várias espécies. Não havia nada melhor do que apanha-las no pé, ainda podendo escolher entre elas e discutir sobre qual era a melhor. Eia fortuna!

Num cômodo que abria portas para o alpendre, em que tempos atrás foi uma venda, ficavam as bananas. Eram bananas prata, maçã e marmelo, desde a verde, como a de vez e as extremamente maduras que eram levadas pra fazer doce no tacho de cobre. Como eram saborosas e como esse cheiro se impregnou nas narinas e volta à tona, ao escrever essa crônica!

Defronte à parte lateral da casa, o monjolo trabalhava noite e dia, socando milho e outros cereais. O barulho da água enchendo e esvaziando, o chão tocado pelo peso dele, não há como esquecer, se a saudade tem ouvidos.

Também volta à memória afetiva, a empregada Norvina preparando os biscoitos nas latas pra assar no forno de barro. Biscoitos de todos os feitios, gostos e tamanhos. Ela morava há mais de trinta anos na casa e cuidava de minha avó idosa e doente, após ter ajudado na criação de todos os filhos, inclusive meu pai que era o caçula. Como era estimada! Incrível a destreza dela, quando, espremendo a massa dentro de um pano, produzia biscoitos em circulo do mesmo tamanho e da mesma forma! Eia, formosura!

Um cheiro que nunca mais pude sentir e, que ainda é presente na minha memória sensorial, era o da água fervente ao encher a bacia de cobre para o nosso banho! Era uma sensação estimulante que alegrava o coração da gente, ao retirar as roupas amarfanhadas e sujas nos folguedos e brincadeiras. Depois do banho, o sono reparador no colchão de palhas, apoiada a cabeça num cheiroso travesseiro de macela.

Há quase dez anos atrás, num quarto de hospital, à véspera de sua partida para a eternidade, meu pai e eu, não me lembro se por iniciativa de quem, revolvemos todas essas lembranças. Acho que ninguém tocara antes no assunto, desde que os avós venderam a propriedade, porque lhe doía na alma e sabíamos disso. Ele se limitava a dizer algumas vezes que não tinha coragem de voltar lá, porque já ouvira falar que tudo fora destruído. Mas nesse dia foi diferente, precisava dessa catarse, dessa viagem no tempo!

Hoje, depois de tantos anos, acho que, porque li um poema que fiz há alguns anos sobre o tema, essas lembranças voltaram-me à mente, Norvina, meus pais, o padrinho, toda a família; também o monjolo, o cheiro das coisas e uma falta de não caber nesse peito maduro, sem avós e sem chão. Eia saudade!