Sr. Cardoso

Assim que entrei na cozinha minha mãe me disse que a filha mais velha de Sr. Cardoso telefonara informando-nos de sua morte. Inicialmente parecia mais uma notícia corriqueira da morte de um amigo da família que morara na inesquecível rua São Paulo, logradouro mais pulsante e fabuloso do conjunto Tibiri I.

Meu cérebro digeriu aos poucos aquela “novidade” e de madrugada, enquanto arrumava alguns livros numa prateleira, lembrei-me de um episódio ocorrido durante uma visita ao Rio de Janeiro em fins de 1997. Naquela época, aproveitara umas férias ou o início da aposentadoria e se tacara para a Cidade Maravilhosa onde, hospedado na casa de uma de suas irmãs, a Terezinha, me recebeu prontamente.

Desconheço se ele sabia – ou se alguém sabe – se desde aquele tempo eu detestava futebol. Que graça tinha em assistir mais ou menos duas dúzias de homens correndo atrás de uma bola deslizando por um campo verde cujos lados mudavam em dois tempos de quarenta e cinco minutos?

Conheci grande parte do Rio de Janeiro caminhando, guiado por quem, embora de passagem, conhecia a cidade como se nela morasse desde a fundação, acompanhando de perto as transformações arquitetônicas, a evolução da música, os percursos dos ônibus, rindo dos entreveros religiosos e aproveitando os raios de sol misturados ao silêncio marítimo, quebrado naturalmente pelas ondas.

Conhecemos a Quinta da Boa Vista, algumas praias famosas, o centro da cidade, a Central do Brasil... De nossas caminhadas, a lembrança que mais insiste em permanecer na memória é a relacionada ao futebol.

– Aqui é o Maracanã, disse-me entusiasmado e feliz por transitar numa espécie de saguão repleto de estátuas de bronze que representavam alguns ídolos do esporte sem graça. Para não evidenciar minha contrariedade, tentei demonstrar algum contentamento, mas por dentro temia que Sr. Cardoso se empolgasse na conversa com um turista que encontramos e ficasse o resto da manhã falando sobre jogos memoráveis, lances perfeitos ou cenas controversas.

Subimos para as cadeiras especiais. O turista narrava um jogo que assistira ali anos atrás. Da emoção de chegar três horas antes, de fazer amizades com os cariocas que levavam alguns instrumentos musicais, da delícia de ficar bebendo cerveja até o jogo começar, da vontade de chorar, de dançar, de gritar, numa mistura indescritível de felicidade, de empolgação, de beleza e de prazer. Eu escutava desdenhando-o mentalmente, mas me tornei tão ébrio quanto ele em poucos minutos.

Quando chegamos às cadeiras especiais, aproximei-me do parapeito e enxerguei a amplidão daquele campo. Por alguns instantes, visualizei times de futebol imaginários entrando, se enfileirando, iniciando um jogo e, logo em seguida, alguém fazendo um gol espetacular. A torcida vibrava intensamente e eu me preparava para entrar naquele sonho, eu me preparava para gritar, eu me preparava para erguer os braços e torcer...

- Vamos embora?

Era Sr. Cardoso que me chamava. Acho que, com sua capacidade superior, percebeu que eu não gostara da idéia de visitar o estádio.

Depois disso nos encontramos mais algumas vezes, porém não tive oportunidade ou nunca me dei conta da importância da visita ao Maracanã. Consequentemente, não disse que, graças a ele, graças ao Sr. Cardoso, eu aprendi que os sentimentos da beleza crescem inesperadamente em lugares inóspitos.

A nossa visita ao Maracanã não demorou mais do que quinze minutos. Pouco tempo para vivenciar um monumento que ficará marcado na memória de muitos brasileiros, mesmo na daqueles que jamais o visitaram ou o visitarão.

Morrer antes dos setenta anos é um sacrilégio para quem gosta de viver, mas tempo suficiente para inocular nas pessoas a admiração estética. Continuo detestando futebol, entretanto assistiria a um jogo no Macaranã em homenagem ao Sr. Cardoso que, em menos de quinze minutos, de maneira inconsciente, me mostrou que a arte do esporte supera lugares, supera pessoas, supera gostos, supera preconceitos.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 29 de janeiro de 2009.