O C E L U L A R

O aparelho era dos mais modernos(batia foto e tudo) e fora comprado com muitas economias; entre elas o dinheiro apurado em biscates no "dancing" lá do bairro, mais precisamente na boate "Pinto Nervoso" de propriedade de Dona Zitinha. Casa de tolerância respeitada do subúrbio, afinal de contas quem já não se deleitou em uma noite de chuva nos braços das "noviças de açúcar";como eram conhecidas as meninas de tal conceituado lugar. Que atire a primeira pedra quem não tiver tal pecado.

Bom, o certo é que o celular do Damião desaparecera misteriosamente em mais uma noitada do final de semana. Naquela manhã nada estava fora da rotina policial da delegacia local, em sua enxurrada de BO's na segunda feira, não fosse o Damião, que estava a espera do escrivão, da tropa de choque da brava polícia militar de Jacupemba. Chegando em casa no dia seguinte após o plantão, as crianças meio alvoroçadas pediram logo ao pai mais uma foto para o álbum de família. Damião ficou sem graça, afinal de contas como falar aos meninos o sumiço do celular, e o pior, o aparelho talvez tenha sido furtado debaixo do seu nariz. Onde já se viu, policial respeitado nas redondezas, já trocara tiros até com a gangue do Elpídio(estupradores perigosos de ovelhas e cabras indefesas), ter seu aparelho surrupiado assim com tanta sutileza. Não teve como esconder e contou do fato para as crianças. Os pimpolhos não se conformaram com a notícia do sumiço do objeto mais valorizado da casa e passaram a chorar copiosamente. A mais velha já havia decorado até umas posições de modelos famosas, vistas e revisadas várias vezes antes do click final, na revista Faces e Bocas. E ainda sonhava até com uma foto, tirada no bendito aparelho, para ser publicada no semanário da cidade. Seria o começo de uma carreira de sucesso como modelo internacional..

Todo mundo sabia na cidade onde iam parar os celulares surrupiados por aquelas bandas. Iam prá na feira do Marreco, na vizinha cidade de Feliz Deserto. Ao contrário do que sugere o nome, a cidadezinha ate que é muito povoada graças ao sinal ruim da TV. A diversão mesmo é namorar um pouco na pracinha e partir pros "agarros" mata adentro. Mas como a cidade fica situada num trevo e é ponto certo de encontro de vários negociantes de todo tipo a tal feira era rumo também de quase todos que cruzavam por lá. Negócios e oportunidades de toda sorte. Do pinico ao equipamento de som três em um. Tinha de tudo. Mercadoria com nota e principalmente sem.

Domingo de sol no começo de mês e a feira estava literalmente fervendo. Tinha gente escapando pelo ladrão. Na verdade essa palavra era um tanto proibida por ali, alguém podia levá-la como uma ofensa pessoal. Damião, de camiseta, boné e óculos escuros que tinha comprado na única vez que fora a praia de Arreia o Barro, tinha feito umas investigações por conta e descobrira após um interrogatório científico, com um suspeito do furto, que o seu aparelho poderia estar sendo negociado na feira. Rumou logo prá lá. Levou o filho mais velho para ajudá-lo, por sugestão de Dona Florisbela. Ela temia um gesto mais tresloucado do marido e na frente do filho ele seria mais comedido.

Procura daqui, procura dali e ficou impressionado com a variedade de aparelhinhos encontrados. Ainda prensenciou a venda de dois "tijolões", aquele celular bem antigo, para um tal de Zeca da Binú. O pobre do velho morava mata adentro mas tinha a sorte de ter uma antena da operadora Viu quase dentro de sua propriedade e o técnico disse que o sinal lá era muito bom. Com economias do dinheiro do bolsa família, do vale miséria, um pouquinho do vale gás e a venda de umas garrafas pet, comprou logo dois. Um prá ele e outro prá sua "véia". E ainda tinha um tal chip 135 anos, onde as ligações poderiam ser feitas de graça nos feriados(isso mesmo, coisa moderna) e também nos finais de semana. Também não achou muita vantagem, com os problemas físicos que estava sentindo, talvez não "emplacasse" nem no ano vindouro. Damião desligou um pouco do que se passava à sua volta e concentrando seu olhar em uma banquinha bem a sua frente, quase não acreditou no que estava vendo; seus olhos brilharam. Conheceu logo o seu "celula", pois tinha um adesivo do Chapolin Colorado na bateria, segundo ele colocado pelo filho caçula.

Não estava com a nota fiscal do telefone e ficou preocupado. A procura pelos aparelhos era grande. Não daria tempo de retornar em casa, pegar o documento e voltar para a feira. Corria o risco de nunca mais ver o seu companheiro de intimidades caseiras. Então resolveu adotar uma tática diferente para não assustar o malandro que estava no comando do comércio.

- Ô amigo, quanto é esse aqui? Perguntou Damião apontando para um celular velho que estava entre tantos expostos.

- 50 ´contos falou o vendedor. Damião já achou muito caro. Imagine...

- E aquele? Apontando para outro. Não queria demonstrar interesse no “seu” celular para o preço não ir as alturas. E o vendedor respondendo. Até que, não aguentando mais de ansiedade apontou o dedo em riste para o inestimável eletrônico.

- E aquele ali?

- Hum... Hã... Opa... esse? 100 contos.

Damião engoliu em seco. Não tinha esse capital. E agora.. Não fosse a presença do filho tinha dado logo uns três tabefes no pilantra e pego seu aparelho, mas não podia dar mau exemplo ao garoto.

- Bom... eu não tenho tanto assim.... Mas levando-se em consideração que este aparelho parece muito com um de estimação que eu tinha e perdi...

Aquilo soou como um raio no corpo do vendedor, que arregalou os olhos e encarou seu interlocutor com maior precisão. Damião discretamente tirou o boné, deu um sorriso cínico no canto de boca e levantou um pouquinho a camisa exibindo o cabo de madrepérola da 45 que sempre carregava consigo. O negociante engoliu em seco e viu que estava frito. O dono do aparelho estava a sua frente e pior, já reconhecera o dono. Era o tal do Damião “mão de pilão”. Um amigo mais chegado já lhe falara que a mão do danado tinha chumbo. Já tinha batido a cabeça nela.

- Já que o senhor gostou tanto e está a fim de negociar, posso lhe dar um desconto especial por conta da firma. 10 contos pelo celular e não se fala mais nisso.

Falou tirando coragem não se sabe de onde e com os olhos quase fechados esperando pela marretada no pé do ouvido.

Damião tava p... Ter que pagar pelo seu próprio aparelho. E sua reputação. Puxou devagarinho os dez contos da carteira sem tirar os olhos do malandro, mandando um código com o olhar, tipo assim: ainda te pego FDP.

Seu filho Ariosvaldo, contente tratou logo de pegar o danado do objeto e saiu aos pulos de alegria, certo de registrar novamente os momentos felizes de sua família. Não sabia que seu pai, além de excelente policial, era tão bom negociante.

O Mazinho que não era besta nem burro, rumou no primeiro pau de arara, sem rumo, pagando a passagem mais cara e mudando o endereço da empresa de celulares. Dizem que agora está instalado em Brasília, fazendo bons negócios e se sentindo muito à vontade com a vizinhança.

ragao2@hotmail.com