O Negro, o Pardo e o Índio.

Outro dia eu estava matando um “xôpis” com meu amigo Praxedes. Fim de tarde, hora do “rép-áuer” (o cara tem a estranha mania do grafar na língua pátria as palavras, no dizer dele, alienígenas, não importa o país de origem). Papo morno, mais desculpa para refrescar a guela do que para engatar um papo sério; quanto de repente, não mais que de repente, uma notícia chamou a atenção do meu amigo Praxedes. A televisão do bar, ligada para ninguém ouvir, anunciava notícias que não interessavam a ninguém a não ser a atenção do meu amigo que, franzindo os sobrolhos, puxou o meu braço e perguntou se tinha ouvido o que o cara da televisão havia falado. Respondi que não, que eu estava igual à moçada no bar, que estava mais interessada em bebericar o “xôpis” estupidamente gelado enquanto apreciava o espetacular “Por do Sol” no Rio Madeira, famoso rio que banha Porto Velho, a capital de Rondônia, em cujas barrancas, obsequiosos empresários instalaram bares e restaurantes para o deleite dos apreciadores da boa mesa regionalista e as refrescantes caipirinhas, cevas e “xôpis” gelados de doer os dentes.

O Praxedes insistiu que o cara do tal canal sintonizado estava falando sobre uma reportagem especial sobre as Cotas Raciais nas Universidades e Concursos Públicos. Respondi novamente que embora fosse pardo, puxando mais para o negro, não estava nem um pouco interessado no debate da questão.

Pois é! No burburinho do bar ouvia-se de tudo, numa cacofonia que mesclava comentários sobre os glúteos e mamas das mulheres presentes, passando pelos Sambas Enredos das escolas de samba da capital, a beleza do lugar e futebol, principalmente sobre a última derrota do São Paulo e a campanha avassaladora do Timão no Campeonato Paulista.

Até os copos e os pratos de tira-gosto perceberam que eu não estava interessado nesse papo pesado do Programa de Cotas do Governo Federal. Cota Racial é igual à política, futebol e religião, todo mundo tem a sua razão. Mas o Praxedes sempre foi insistente. Teimoso até! E pior, o cara era um entusiasta do tema.

Agarrando meu pulso com força o “mulo empacado” falou.

“Como que você não está interessado? Tu mesmo não me contaste que os teus bisas por parte de pai não eram negros e índios? Que os teus bisas por parte de mãe eram negros e brancos portugueses? Então, meu pardo, cafuzo e mestiço? Tu és mais negro do que pensas. Tu és um hectare neste latifúndio de Cotas Raciais. Axé, meu Nego”!

Diante de tal irreverência do meu amigo respondi sorrindo com gosto.

“E daí, meu caro! Eu não preciso que ninguém abra as portas para mim. Eu mesmo faço o meu destino”.

E com um gesto de enfado, continuei:

“Eu sou partidário da integração e não da segregação racial, social e/ou econômica, sacou, meu caro”? “Para mim, esse tal de Programa de Cotas é o caminho mais curto para o “apartheid”. O que vai ter de negro sendo hostilizado nas faculdades pela vaga conseguida pela cor e não pelo intelecto... Presta atenção! Vai ser uma festa de intolerância”. Achando que o assunto estava encerrado concentrei a minhas atenções nas pernas cor de jambo e bem torneadas de uma conterrânea que bebericava, fazendo biquinho, uma caneca de “xôpis” bem ali, ao lado da nossa mesa. “Nossa! Que cruzada de pernas”. Pensei.

O “mulo” que não estava nem aí para a minha indiferença, massacrou:

“Integração um cacete. Onde que tu estás vendo, viu ou verá integração no Brasil, cara”? “Segundo as últimas pesquisas, noventa e cinco por cento das vagas ocupadas nas universidades de ponta, estaduais e federais, ou seja, com conceitos A e B e que são de “grátis”, são ocupadas pelos “bacaninhas” das classes Média, Alta e Altíssima. Só entra o cara que não precisa pagar para estudar. Só aí já tem o teu “apartheid” social e econômico totalmente escancarado. Está bom pra você, meu nego, ou está pouco”? E continuou implacável: “Meu Nego, será que tu não vês o que está na tua cara e na cara de todo mundo. Será que a tua miopia de oito graus foi transferida para o teu cérebro, para o teu senso de ética e para o senso de justiça? Era só o que faltava, um amigo alienista”.

Ainda relutante em embarcar no papo do Praxedes, desviei os olhos do paraíso cor de jambo ao meu lado e sorrindo com os olhos encarei os cento e quarenta quilos de gordura bem distribuída no corpanzil do meu amigo e perguntei:

“Meu estimado glutão, eu sei que você além dos prazeres da mesa também é chegado nos prazeres da carne, e me admira muito a ausência de qualquer comentário de sua parte a respeito das cruzadas de pernas da conterrânea aí do lado”.

Olhando de soslaio para a bela morena ao lado, Praxedes acomodou o enorme traseiro na cadeira dupla que o sustentava e conspirativo inclinou a cabeça chamando-me para perto, murmurou:

“É claro que eu vi o teatro da bela da tarde para o garotão da mesa da frente. Mas o que realmente está me interessando no momento é a tua opinião a respeito da Cotas Raciais. E aí, cara? Vai se omitir? Não estou te reconhecendo”!

“Meu caro epicurista...”
“Epicu... O Quê”? “Qual é mano? Estás me estranhando”?
“Calma, meu velho! É que de repente este adjetivo veio-me à mente e ocorreu-me que ele se aplica como uma luva a você. Depois eu te explico o que ele significa. Continuando... Meu caro epicurista, não te ocorreu que estão dividindo o Brasil entre brancos e negros com a desculpa de que estão corrigindo uma pseudo distorção econômica e social”?

Praxedes, tal qual um Sátiro devasso desviou os olhos lúbricos das pernas irrequietas da morena, fixou os olhos penetrantes em mim e vociferou:

“Repito... Um cacete! Esse argumento de pseudo distorção, divisão do Brasil e mais o raio que o carregue... Tu esqueces, meu caro amigo ceguinho, que eu sou negro. E que nós, os negros, os afros brasileiros, estamos sendo espoliados há quinhentos anos por uma sociedade de minoria branca. Que essa história de que no Brasil não existe segregação, na verdade, é pura balela. Até hoje sou segregado por ser preto e gordo”.

“Mas é honesto, batalhador e vencedor. Veja bem, um cara, pobre, preto e gordo. Filho e neto de retirantes nordestinos e seringueiros. Nascido e criado entre a Baixa da União e o Alto do Bode, uma das regiões mais pobres e insalubres da Porto Velho dos anos sessenta, e mesmo assim, consegue ser um dos primeiros graduados em Ciências Contábeis da Universidade Federal de Rondônia. Empresário de sucesso, dono de um dos melhores escritórios de contabilidade da cidade, como é o teu caso. Um cara desse não é resultado do meio, é o típico exemplo de tenacidade para vencer o círculo vicioso da miséria e da ignorância. Meu nego, você pegou a bola na intermediária, driblou todo mundo, inclusive o árbitro e os bandeirinhas, e, na saída do goleiro você tocou por cobertura fazendo um verdadeiro Gol de Placa. Meu caro, você não precisou da ajuda de nenhum cartola para vencer o jogo da vida”.

“Pode até ser... Ocorre que nem todo mundo tem as oportunidades que eu tive”.

“Que oportunidade, cara? Pirou o cabeção? Ficou abestalhado de vez? Meu amigo, você sempre estudou em escola pública, do Primário ao Científico. Prestou vestibular contra os bem nascidos que estudavam no caríssimo Colégio Dom Bosco e mais o caras que podiam pagar cursinhos exclusivos. Meu Nego, nós tínhamos que ralar nas bibliotecas públicas... Contar com a boa vontade dos professores da Rede Pública em suas horas de folga. Não venha me dizer que nem todo mundo teve a oportunidade que você e eu tivemos. A oportunidade estava lá, com o Rabo de Cavalo na testa como bem exemplificou a Hortência, aquela divindade das quadras de basquete feminino. Nós tivemos somente que nos agarrar a ele quando ele passou, senão perdíamos o trem da vida”.

“Ta legal, nem todo mundo é igual. Acontece que nos Estados Unidos, em um sistema social similar ao do Brasil, o Sistema de Cotas funcionou muito bem. Lá, um percentual expressivo de afro-americanos ascendeu social e economicamente. Estão felizes por lá ou você não assistiu a posse do Obama”.

“Agora é a minha vez. Cacete! Cacete! Cacete! Que similar que nada meu rapaz! O país dos caras é rico. São eles que emitem o dólar. São a maior potência militar e econômica que a história já conheceu, nem Roma em seu auge chegou a tanto. E tem mais, a segregação racial lá, sempre foi exacerbada. Lá, sempre vigorou duas raças (?), os ‘Black’, ou seja, os negros, pretos mesmos, e os ‘WASP’. E os intermediários entre um e outro, os ‘COLORED’, ou seja, os de pele desbotada, incluindo aí os amarelos e os vermelhos, eram discriminados, em algumas regiões, tanto pelos brancos quanto pelos negros. É só lembrar-se dos Panteras Negras e a Ku Klux Klan. Então, ou eles tomavam uma medida drástica para reduzir a distância entre pretos e brancos ou ficariam a beira de uma segunda guerra civil. E te digo mais, a luta de Martin Luther King não era por privilégios, era por igualdade de direitos, por oportunidades iguais. Para tanto, ele sempre exigiu educação básica de qualidade agregada aos direitos civis emanados da Carta Magna deles. Luther King sempre teve orgulho da capacidade dos negros americanos serem capazes de vencer todas as adversidades pelo próprio esforço sem necessidade da proteção de quem quer fosse. Ele só exigia o respeito aos direitos básicos de cidadania”.


“Beleza, o teu discurso! Acontece que os nossos negros são pobres de marré-marré. E aqui, a segregação é fugidia, sorrateira. Hipócrita até! É muito pior! O preto fica indefeso sem saber de onde vem a discriminação. Então tem que ter as Cotas. É necessária a implantação para a integração dos negros no mercado de trabalho e no meio acadêmico. E, vem cá! Que negócio é esse de ‘BLACK’, ‘WASP’ e ‘COLORED’, o que é que isso tem a ver com o nosso assunto”?

“Vou explicar. ‘Black’ você já sabe, é o preto, o afro-americano. ‘WASP’, é a sigla, em inglês, para ‘White, Anglo-Saxon and Protestant’, traduzindo: Branco, Anglo-Saxão e Protestante, ou seja, branco puro (?), PO mesmo, lá no deturpado conceito deles. E no conceito ‘COLORED’, entra de tudo o que gente de cor, passando do mulato ao mestiço de quaisquer espécies, incluindo aí, os hispânicos, os ‘cucarachas’. E neste caso, ‘cucarachas’ para eles são todas as pessoas oriundas do México à Patagônia, incluindo, é claro, o Brasil”.

“Ninguém é perfeito...! Espera aí! Cucaracha? O que é isso”?

“Cucaracha é denominação hispânica para barata. Os gringos adotaram esse substantivo hispânico e o adjetivaram para denominar, pejorativamente, todos os imigrantes latinos, incluindo, é claro, os brasileiros. Eles acham que nos reproduzimos exponencialmente, iguais às baratas. Esse bicho nojento”.

“Pois é! Ninguém é perfeito... O que o mundo viu é que as Cotas Raciais geraram um presidente negro. Aqui no Brasil, o máximo que conseguimos foi colocar um operário no Planalto, que inclusive é um operário branco, se fosse preto não entrava. Por onde anda o Vicentinho”?

Ainda tentando fugir daquele papo pesado e que prometia, olhei em volta examinando as caras novas que ocupavam as mesas do bar. O namorado ou sei lá quê da morena do lado chegou, deu um beijo cinematográfico na boca carnuda, pediu uma caneca de ‘xôpis’, puxou a cadeira e sentou-se. “Será que ele sabe que ela dá mole para todo mundo”?

Impaciente pela interrupção o Praxedes deu uma leve batida no tampo da mesa e disparou:

“Que é que foi, cara? Vai ficar torcendo o pescoço e me deixar falando sozinho”?

“Pode ser, pode até ser. Você fica batendo na tecla da inserção dos negros, numa alusão direta de desigualdade em relação aos brancos. Tudo bem, e o resto? Como é que fica”?

“Que resto? Do que é que tu estas falando?

“Do resto, sim! Uma vez que os iluminados de Brasília, você e uma enxurrada de gente resolveram separar o Brasil entre Brancos e Pretos. Como é que ficam os ‘COLORED’? Quer dizer, os pardos, os mulatos, os cafuzos e os mestiços. É isso mesmo, o resto. Porque os índios já têm a tutela do Estado, e os negros estão caminhando a passos largos para o mesmo benefício”.

“Não exagera cara! Nós não precisamos da tutela do estado”.

“Não? E o que é o Programa de Cotas? Veja o meu caso por exemplo. Eu sou, segundo a classificação do Estado, da categoria PARDA. Pelo menos é o que consta no meu Certificado de Reservista. Nem BRANCO nem PRETO e nem MESTIÇO. Está lá, em letra maiúscula e sublinhada, P A R D A e SINISTRO MANO.

“Sinistro mano? Que palhaçada é essa? O que é que isso quer dizer?

“É uma classificação científica para o popular canhoto, o esquerdo. O que dar-me o direito de, por correlação, achar que a designação PARDA tem origem na antropologia canhestra de algum maluco acadêmico. Continuando... Pois é! Como é que ficam os ‘COLORED’, ou seja, os desbotados, os que têm a pele um pouco mais clara? Ficam no limbo”?

Pachorentamente o Praxedes levantou o braço chamando o garçom para pedir mais duas canetas de ‘xôpis’ e com um sorriso nos lábios exclamou:

“Sou todo ouvido”.

“Então lá vai...! Pegue o meu exemplo de novo. Eu sou o típico fruto da miscigenação brasileira. Eu descendo diretamente das, digamos, três raças (?) que formaram o povo brasileiro, Europeu (branco), Africano (negro) e o Silvícola (amarelo ou vermelho, depende da quantidade de urucum), segundo as definições de Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freire. Digamos que ao concluir as provas do vestibular de uma Universidade Federal ou Estadual eu consiga os mesmo pontos de um concorrente negro, Pura Origem. É, porque vai estar lá no Certificado de Reservista do cara. Cor da pele: NEGRO. E no meu Certificado de Reservista o Estado classificou a minha cor como PARDA. Como eu não pertenço à categoria beneficiada pelo Programa de Cotas, uma vez que eu não sou PO, sou PÉ DURO, quem que você acha que vai ser aprovado? É claro que é o cara que tem a tutela do Estado. O cara que é PO”.

“Huuummm”!

“Isto mesmo! Huuummm! Vejamos outro exemplo. Peguemos dois jovens da periferia. Mas periferia mesmo, daquelas em que o cidadão sobrevive com salário mínimo e tem que todo dia se espremer feito sardinha em lata nos ônibus decrépitos de Porto Velho para ir trabalhar e estudar, e que resolvessem romper o círculo vicioso da miséria e da ignorância. Os dois são paupérrimos, sempre estudaram em escola pública, noturna. E que se inscreveram no PROUNI. Acontece que um é branco, miserável, mas é branco. O outro também é miserável, mas é negro. Os dois estudaram juntos. Um ajudou o outro a superar as deficiências educacionais. Digamos, um era bom em matemática e física, e o outro era craque em química e redação. Pois bem! Juntos, emplacaram o mesmo número de pontos do mesmo curso escolhido. Diga-me, meu rei! A quem que a Universidade Federal ou Estadual, à luz da fria análise dos dados cadastrais vai dar a vaga no curso? Não! Não precisa responder. Somente tente imaginar como é que fica a cabeça do branco miserável preterido no curso por causa da cor da pele. E o pardo, o cafuzo, o mulato ou o mestiço, também miseráveis; porém sem enquadramento em nenhum dos pólos, NEGRO ou BRANCO? Que embora sejam tão desfavorecidos quanto os negros não estão sob o aconchegante guarda-chuva da tutela do Estado, como é que ficam? Quer saber? Estou ficando de “saco cheio” com esse papo”.

Sem a menor paciência para continuar o papo sobre um assunto tão áspero e tão profícuo em contradições, olhei para a mesa ao lado a fim de obter um refrigério para as minhas idéias, contemplando as pernas da morena sestrosa. Que pena, ela tinha ido embora, o Sol também tinha sumido por detrás das matas do outro do Rio Madeira, restava somente o reflexo das luzes neon nas águas acobreadas do querido Rio Caiari, antigo nome do caudaloso Rio Madeir. Em seu lugar estava sentada uma coroa com batom cor de brasa e cabelos exageradamente oxigenados. “Deus! Que tribufu”! Levantei o braço e quase gritei:

“Garçom! Faz o favor, traz mais duas canecas de ‘xôpis’, passa a régua e traz a conta”.

Praxedes ainda quis continuar o papo sobre o Programa de Cotas, mas educadamente atendeu ao meu gesto de passar os dedos sobre a garganta, com o sugestivo gesto de que para mim, pelo menos por enquanto, o assunto estava encerrado.