SILÊNCIO FELINO

Minha gata morreu. Prenhe de não sei quantos filhotes, na mesma calma e mansidão de sempre. Espumando pela boca, agonizou lentamente até a morte, assim me foi relatado. Não quis ver o corpo. Preferi ficar deitada na cama lembrando de sua vivacidade e sagacidade. Seus pulos, seu silêncio delicado, aquele silêncio que era o que mais gostava nela. Parecíamos conversar nesse silêncio, sentir, chorar, rir, sem precisar de nenhuma expressão concreta disso, de concreto só o silêncio. O caminhar manso, a calma extrema, o ataque na hora precisa, a queda firme de pé. É tudo isso que me atrai nos felinos e era de tudo isso e algo mais que eu gostava nela.

Ela chegou até mim num final de tarde, em meio a livros. Veio de uma escola. Pequena e frágil, mas muito esperta. Era por cima dos livros que ela gostava de descansar, apelidamo-la de estudante. Espantava-me as coisas que ela fazia, já tinha tanto tempo que eu tinha tido um gato que nem lembrava mais de como eles se comportavam. Contava a todos as artimanhas feitas por ela com a admiração de uma mãe que vê seu filho começar a andar ou falar. Mas, todos em casa diziam que ela parecia não gostar muito de mim. É que às vezes ela se afastava quando eu alisava seu pelo macio, só que a situação não era bem assim, agente se entendia. O que ninguém via era que nós duas sabíamos nos comunicar muito bem. Aquela mansidão, aquele alisar-se nas minhas pernas, os miados pedindo comida, o espreguiçar... tudo nos faziam entender uma a outra. Quando chegava em casa no final da tarde ficávamos as duas, sós, a conversar. Eu a aconchegava e ficava alguns minutos só acariciando-a ou brincando com ela, gatos mesmo adultos não perdem sua ludicidade. Que maravilha! Invejo os felinos nesse ponto.

As pessoas costumam dizer que o cão é o melhor amigo do homem, que ele é fiel e que o gato é um bicho traiçoeiro, falso, que não liga pra ninguém. Não tem quem me faça ter essa visão. Cada bicho tem sua maneira de se portar. Cada coisa é única, cada ser humano é único, cada bicho é único. O gato é único. Minha gata era única. Unicidade minha e dela que reforçava a nossa comunicação. Identificávamos-nos.

Ela tinha um excesso de delicadeza. Delicadeza cabível somente às fêmeas. Definitivamente, ao contrário do que todos pensavam, nós nos entendíamos muito bem. A vontade que eu tenho aqui é de relacionar todos os adjetivos que cabiam a ela, só a ela, como gata única e talvez os cabíveis a mim, só a mim, como mulher única. Mas, uma crônica dá pra isso? Cabem em uma crônica todos os nossos sentimentos, segredos e desejos? Cabe numa crônica tudo que se passava entre mim e ela quando conversávamos no silêncio? Tão óbvia é a resposta que talvez seja tolice está fazendo as perguntas. Entretanto, precisava dessas perguntas tolas aqui, talvez não para o leitor, mas para mim. Explicar o que se passava entre nós duas, impossível. Quem tem um animal pode até entender uma ínfima parte do que expresso.

Ela morreu e ficou aquela falta no lugar. Uma falta que se intensifica quando chego no final da tarde e procuro com quem conversar “em silêncio”. Falar no silêncio não algo simples, poucos conseguem. Os gatos sabem, minha gatinha sabia.

Silvia Pina
Enviado por Silvia Pina em 07/02/2009
Código do texto: T1427250
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