Um grande presente

Lembro do meu pai, com imensa saudade, todos os dias, senão em quase todos, apesar dele ter partido há mais de dez anos. Recordo sua forma de amar, sua generosidade, suas citações domésticas, seu bom humor, sua ironia, enfim, sua forma de ser. O meneio da cabeça de minha filha lembra meu pai. O andar de meu filho mais velho, já homem há alguns anos, traz meu pai a minha lembrança. Os pés meio desproporcionais de meu terceiro filho lembram meu pai. O olhar ou um trejeito do caçula lembram meu velho, que não sabia dançar e nem chutar uma bola de futebol, apesar de gostar muito do esporte, chegando a arbitrar algumas partidas em sua juventude. Vim concluir anos depois o porquê da falta desses itens. Ao perder o pai ainda menino, começou a trabalhar muito cedo, não tendo tido tempo para brincar. E quando adulto, se viu obrigado a assumir por algum tempo a casa e criar seus dois irmãos do segundo casamento de sua mãe. O cansaço e a responsabilidade lhe subtraíram a oportunidade de participar das festas dançantes. Mas ele foi feliz e nos fez intensamente felizes. Fazia questão de difundir sua realização de pai, lembrando vários momentos, principalmente no dia em que eu e minhas duas irmãs passamos de uma vez no vestibular da Universidade Federal do Pará. E depois vieram as formaturas e outros eventos dos quais participou conosco. Lembro ainda criança que quando ele me carregava e me agradava proferia de forma ritmada as seguintes palavras: “pesenta, pesenta ganda uma”, repetidas vezes. Lá pelos meus dez anos, com vergonha de meus colegas, pedi que ele não fizesse mais aquilo. Sabe lá como ele se sentiu, mas respeitou minha vontade, não tendo, diante de sua simploriedade, a reação que eu teria hoje, explicando que aquilo era um mimo, fruto de seu valor afetivo; que nem toda criança tinha aquele privilégio de um ato afetuoso do pai. Uns porque não tem pais, outros pela falta de tempo, oportunidade ou sensibilidade do progenitor. Depois de crescido lembrei desse fato e lamentei minha conduta infantil. E o tempo seguiu seu curso inexorável. Quando ele já estava doente, um ou dois meses antes de partir, em uma de nossas longas e saudosas conversas, em que tive a oportunidade e aproveitei, graças a Deus, para pedir perdão de atos infelizes, cujos perdões vieram com lágrimas e demorados abraços, numa dessas vezes lhe perguntei o que ele queria dizer com o seu “pesenta, pesenta ganda uma”? Ele riu não se lembrando muito, e não soube de pronto dizer a que se referia, mas que era uma linguagem infantil, de fazer a criança falar. Decifrei então a charada. “Pai, não seria uma alteração e inversão de palavras, significando, respectivamente, presente, grande e um, que numa linguagem pueril, além da má articulação das palavras os artigos e pronomes são mencionados sem concordância”? Ele assentiu plenamente, de que na realidade ele queria dizer que eu tinha sido um grande presente, em consonância com que disse o salmista: “Eis que os filhos são herança do Senhor, e o fruto do ventre o seu galardão”. Sempre que tomei e tomo meus filhos no colo, pronuncio o mimo de meu saudoso pai: “pesenta, pesenta ganda uma”. Ontem, no carro, meu filho Jordão de 4 anos perguntou: “pai o senhor me ama? Claro meu filho! – respondi, - você é um grande presente. E ele imediatamente completou: “pesenta, pesenta ganda uma”, levando eu e minha mulher a rirmos ternamente. E eu, além da alegria e da satisfação pela observação do curumim, voltei a lembrar de meu saudoso pai.