MEMÓRIAS DE UM PRÍNCIPE

MEMÓRIAS DE UM PRÍNCIPE

Josa Jásper

O título acima talvez lhe soe estranho. Eu mesmo nada tenho em mim de principesco, mas era exatamente assim que meu pai costumava chamar-me desde a infância! Imaginei poder retribuir-lhe a honra ao tratá-lo como um rei... Malgrado seu apelo elitista, as memórias deste "príncipe" simplesmente ensejam mostrar que entronizei-o como um verdadeiro rei no meu castelo de saudades.

Com efeito, meu pai foi capaz de transformar os seus domínios - um pobre casebre à beira de uma rua poeirente, na cidade de Nilópolis - numa espécie de reino encantado, onde minha mãe foi sempre a única rainha e os filhos, seus príncipes e princesas, alvo de recato especial e esmerada educação. Era um ninho de amor, onde reputávamos por alto privilégio nossa condição de filhos do rei. Por conseguinte, efetiva e afetivamente, permitíamos que nosso heróico soberano e falecido pai reinasse sobre nossos ternos corações.

A casa humilde era o nosso palácio, onde partilhávamos nossos banquetes, que raramente incluíram mais do que três pratos : o tradicional feijão-com-arroz, acrescido de alguma hortaliça do quintal. Mas os domingos eram sempre festivos! Vestíamos a melhor indumentária do pequeno guarda-roupa real, às vezes com indisfarçáveis remendos, mas sempre cheirosa e limpinha! Na volta da igreja, então, experimentávamos um cardápio mais abrangente, incluindo carne e "maionaise", repetidas vezes até acompanhado de guaraná ou coca-cola, mormente nas datas comemorativas! Aliás, a alimentação farta foi um ponto forte na filosofia de vida do nosso rei... Lembro-me bem de que, em certa época, quando o erário real já não a permitia, meu pai - o nosso rei - sacrificou-se num segundo emprego, à noite, como operador do Cine Mascote, no Méier, só para manter nosso padrão alimentar. Com certeza não havia outra forma de acompanhar o incremento simultâneo dos preços dos gêneros e do nosso apetite, firmemente decididos a crescerem juntos! Aí, quase nós nem víamos o nosso rei ! E o rei afligia-se pelo pouco convívio com sua rainha, seus dois príncipes e três princesas.

Algumas vezes, despertávamos pela madrugada, ao som dos seus cochichos com nossa rainha, após seu tardio regresso. Outras vezes, mantínhamo-nos acordados até sua chegada, quando, então, nós divertíamos com os pedacinhos de filmes partidos que ele guardava para nós. Valia-se da nossa algazarra para compensar, certamente, as vaias da sala de projeção insatisfeita, no breve período em que o público ficava à espera de que o paciente operador emendasse o filme.

Nosso rei era criativo: como só havia três camas reais no palácio, duas delas eram encostadas uma a outra, para que quatro de nós dormíssemos transversalmente. A terceira cama ficava com a princesa primogênita, regalada com seu próprio aposento, ao lado do nosso. Quanto ao rei, contentava-se com as esteiras de palha sobre o duro e frio chão de cimento liso e esverdeado. nas noites mais quentes, corríamos todos para as macias esteiras do rei, onde, recostados ao seu corpo fofo e cabeludo, experimentávamos o doce enlevo de suas estórias de outros príncipes e princesas de reinos ainda mais deslumbrantes que o nosso, com magníficos castelos e povoados de animais falantes e de misteriosas e encantadoras fadas!

O rei nos foi excelente mestre! Ensinou-nos as primeiras letras, as primeiras operações aritméticas e aperfeiçoou nossa escrita com intermináveis cadernos de caligrafia! Com ele também aprendi a

nadar. E, embora não fosse ele mesmo um ciclista, ensinou-me a andar numa bicicleta de segunda mão, comprada de um amigo, especialmente para presentear-me! Era meu aniversário. A carona deixou-o longe do palácio. Até hoje recordo sua chegada a pé, suado, empurrando a bicicleta portão a dentro, em minha direção. Seu rosto resplandecia da mais pura satisfação, como se fosse uma criança, igual a mim! Tinha sempre a mesma expressão, quando presenteava a cada um de nós, não medindo esforços em prol de nossa felicidade!

Nos finais de semana, o próprio rei envergava um avental, como cozinheiro do palácio. E ainda lhe sobrava tempo para pegar conosco uma das vassouras ou o ancinho, promovendo a faxina dos domínios da reino!

Já adulto, surpreendi-o, às vezes, agachado, a polir meus sapatos ou os metais dourados do meu vistoso fardamento de cadete. Quando, após os licenciamentos, eu retornava, fardado, para a Academia Militar, meu rei se transformava no meu carregador de malas. Jamais entenderei seu orgulho, ao desfilar ao meu lado nessa condição! Só sei que de nada adiantavam minhas ponderações em contrário! Assim, inteiramente a contragosto, eu via meu rei transformado em lacaio, por algum estranho capricho de seu régio coração.

Tudo o que sou na vida devo a meu rei, sempre amigo e paciente comigo, mas nunca omisso, na eventual necessidade de me aplicar algum dos seus justos corretivos: a repreensão austera... as proibições... as surras através de um velho cinturão, sempre pendurado atrás da porta...

Em momentos como este, em que a brisa amena da saudade vem tanger meus pensamentos de volta àquele castelo sem torres do meu passado, eu sinto um quê de nostalgia e decepção por não ter proporcionado, quem sabe, maior orgulho e alegria àquele vulto fidalgo do meu pobre pai, que soube exercer tão aprazível soberania sobre mim...

Há vários anos atrás esse rei recebeu nos Céus sua verdadeira coroa, mas deixou, na terra, um príncipe morto de saudades de tudo quanto foi aqui tão intensamente partilhado entre pai e filho. Deixou-me, em verdade, algumas coisas que foram dele, mas levou com ele todas as coisas que eram nossas! Essa foi, sem dúvida alguma, a mais dura experiência, não apenas minha, mas de toda a família real! Mas nós aprendemos com nosso rei a nunca entrar em desespero, pois todas as crises são passageiras, porque o próprio mundo o é! A vida é um fogoso corceu que galopa sem auxílio de esporas e estanca a marcha sem que puxemos as rédeas! Faz-nos bastante falta o conforto seguro da sua presença; as brincadeiras divertidas e até as de certo mau gosto; sua vocação inata para contar estórias, muitas vezes inventadas por ele mesmo; seu sotaque nordestino, tão pródigo em construções pitorescas, que nos soavam tão engraçadas; e, sobretudo, o brilho intenso dos seus olhos, tão incomuns, comicamente bicolores, um deles azul e o outro castanho... É um cortejo de lembranças gostosas que povoa a mente de todos nós, trazendo-nos mais sorrisos do que propriamente lágrimas!...

Eu sei que ele jamais voltará para mim, mas eu me reunirei a ele algum dia...Resta, apenas, na mais vívida das memórias do seu príncipe, o consolo de havê-lo honrado permanentemente como a um rei! Um rei sem trono, sem manto real, sem cetro e sem uma coroa terrena, de quem fruí a mais grata intimidade a ponto de poder chamá-lo de... papai.