Visões estrangeiras 1

Não me perguntem como fui parar lá. Essa é uma daquelas loucuras que uma vez na vida, ao menos, a gente precisa fazer. O fato é que ali estive. Em Viena, capital da Áustria, num frio de congelar até pensamento. Para constatar que o Danúbio azul de Strauss é, na verdade, verde; que as árvores se preparam melhor que os seres humanos para o inverno, abrindo mão de suas folhas para economizar energia; e que luvas de couro, cachecóis de trama fechada e horrendos gorros de lã tem, sim, sua utilidade – na verdade, chegam a ser imprescindíveis. Assim como lenços de papel para secar um nariz constantemente úmido, que sangra tentando conciliar o calor interno com o frio externo sem congelar-se...

Escorrendo ou não, levei meu nariz e meus olhos extasiados pelas ruas largas ladeadas de calçadas mais largas ainda, onde árvores completamente desprovidas de verde emolduram prédios de arquitetura primorosa e ornamentos simétricos, compondo uma paisagem harmoniosa e delicada, ainda que com um toque de rigidez, talvez por conta da uniformidade de cor. E em todas as esquinas meus ouvidos, mesmo sob o gorro de lã, ouviam uma língua rude falada por pessoas gentis, que andam rápido sob o vento gelado mas que não se negam a dar um sorriso ou uma informação, nem que para isso seja necessário sofrer como se quase se desculpando por não ter fluência na língua universal do país de Obama. Um povo discreto e silencioso habitando uma cidade sem grandes contrastes: tudo se coordena.

E tudo é limpo, organizado e funcional; respeitam-se horários, semáforos, prioridades. Praças amplas, semifechadas por grandes edifícios seculares, guardam lojas finas e caríssimas de roupas modernas, vizinhas das igrejas que remetem ao passado religioso da secular Casa de Habsburgo - mais tarde império austro-húngaro, pivô da primeira guerra mundial, que pôs fim à monarquia na Áustria. Parece mentira que muita coisa foi semidestruída durante a segunda guerra, e que hoje a cidade é a capital de uma nação neutra. Um lugar que, em qualquer lado para o qual se olhe, oferece um monumento, um museu, uma igreja, um edifício histórico, um palácio imponente...

E ainda há os inúmeros cafés, onde apenas entrar é uma maravilha, por conta do delicioso calor mantido graças às portas pesadas que fecham todos os estabelecimentos. E nessas visitas o sofrido nariz sente-se recompensado pelo aroma de magníficos pães de todos os tipos: com farinhas brancas ou escuras, sementes de todos os sabores, formatos os mais diversos. Ah, e o que dizer dos doces? Um paraíso de tortas, strudels, roscas... além de um mundo de chocolate! Mas não é preciso gastar preciosos euros para desfrutar do calor abençoado: diz-se que em Viena se pode passar horas sentado num desses aconchegantes lugares - lendo, conversando ou só olhando para fora - com apenas uma pequena xícara de café. Seu garçom não vai ficar limpando a mesa para que você se levante e pague a despesa.

O antigo centro fica afastado do famoso Danúbio, e esta distância fez com que os urbanistas imaginassem uma forma de aproximar as duas épocas, trazendo para suas margens modernos edifícios residenciais e comerciais, amplas praças e, como em quase todas as grandes cidades européias, um especial cuidado com o pedestre. O cidadão pode, sem medo, caminhar em alamedas largas e arborizadas ou em seus muitos parques, todos amplos e planos; e ainda fazer uso de um sistema de transporte urbano moderno e bastante eficiente, composto por trens, ônibus, metrôs e bondes elétricos. Falo do habitante da cidade, e não de uma visitante eventual que precisa decifrar os mapas: a lógica germânica, para uma brasileira (loira?), não é de assimilação imediata.

O frio, bem, este é onipresente. Um frio quase imutável, não importa se são oito da manhã, se é meio-dia, se são seis da tarde – aliás, seis da noite. Estamos no inverno, esse inverno mutante da Terra que tem pregado suas peças. Mas a capital da Áustria, a cidade da música e terra natal de Franz Schubert e de Johann Strauss (o pai e o filho), passa a certeza de que ela e seu povo assimilam bem tanto o frio como a música eletrônica. Ainda que tenha, e por certo sempre terá, o espírito misto de energia e melancolia da música imortal de outro de seus tantos ilustres habitantes: Wolfgang Amadeus Mozart.