PEDACINHO COLORIDO DE SAUDADE

Emudeceram os bumbos, caixas de repique, tamborins e até mesmo alguns trombones e trompetes que ainda conseguem se fazer ouvir. Os festejos de Momo terminaram há dois dias. Só comentários isolados sobre os desfiles das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro e São Paulo são ouvidos. Para alegria dos grisalhos, algumas imagens de passistas desinibidas que mostraram suas formas perfeitas ao longo das cansativas transmissões que monopolizaram a telinha doméstica durante os dias preguiçosos que se foram. Do nordeste, chegou-nos a sonoridade moderna dos trios elétricos dominados pelas parafernálias eletrônicas, que varreram para a saudade a antiga forma de se fazer carnaval de rua.

Ficou no ar a simples pergunta: que fim levou todas aquelas antigas marchinhas que fizeram a alegria dos outrora animados foliões? Em meados deste mês, entre os dias seis e dez, por exemplo, todos relembravam daquela inesquecível composição: “mas que calooor/ mas que calooor/ atravessei o deserto do Saara/ o sol estava quem e queimou a nossa cara...” Ela possuia o condão de incendiar os salões. As orquestras exibiam o melhor de seu instrumental: pistons, trombones, saxofones, clarinetas e, principalmente, a percussão que mantinha a cadência. Tudo ali, na raça, sem grandes aparatos eletrônicos. Apenas um microfone para não arrebentar a voz dos cantores. Não é mesmo, Sabu? Ele pode contar, muito bem, como era difícil a tarefa de encarar quatro bailes e duas vesperais. E os músicos também.

Na edição de vinte e tres de fevereiro de sessenta e oito, uma sexta-feira, este nosso diário informava que as repartições públicas, em razão de ponto facultativo, só voltariam a funcionar na quarta-feira, após o meio dia, inclusive os estabelecimentos bancários. Esse detalhe é apenas uma curiosidade, mostrando que há quarenta anos, o carnaval já paralisava o país.

Ainda segundo o nosso jornal, na edição mencionada, a Orquestra Cappelooza seria a responsável pela cadência dos bailes do Caiçara Clube, enquanto a Continental, dividida em duas, se encarregaria da animação no Grêmio Paulista e no Aero Clube. Este prometia em publicidade de rodapé, para a noite de sábado, abrindo seus festejos “uma noite no inferno”. E ninguém fazia questão de participar do evento, pois, segundo as crenças da época, nada que as cinzas da quarta-feira não resolvessem.

Mesmo com a austeridade dos costumes daqueles idos, no carnaval valia quase tudo. Enquanto os metais e a percussão animavam a maioria dos foliões, alguns pierrôs e colombinas solitários, que acabavam de se conhecer, faziam uma pausa para rápidas e inocentes trocas de carinho, mesmo que fosse num canto discreto do salão, com a inconveniência dos severos observadores que se encarregariam da divulgação no dia seguinte. Existiam, ainda, os fotógrafos profissionais que freqüentavam os bailes. E as fotos eram expostas nas vitrinas para quem desejasse uma recordação. Era aí que residia o perigo.

Mas, para os freqüentadores do Aero, havia a possibilidade de ir observar os canteiros floridos e bem cuidados, sentir o perfume das flores no jardim. E se houvesse um luar colorido, enfeitando o céu, melhor ainda. E ninguém precisava se preocupar com qualquer tipo de violência. Só com as estrelas que seriam cúmplices silenciosas de algo romântico. Podia ser um breve encontro de apenas quatro noites, algo que terminaria na já silenciosa madrugada da quarta-feira, com a certeza de que a música não seria jamais esquecida. Afinal, a sua letra dizia apenas a verdade: “confete, pedacinho colorido de saudade...”