O Prestanista

Há pessoas que parecem não fazer parte da realidade que temos como normal. O personagem desse texto parece ser fictício, mas não é. Existiu e ainda hoje está na minha memória à forma tão singular do seu modo de trabalhar e conviver num mundo tão competitivo, já na época de 70. Quem não se destacasse de alguma forma, passava despercebido. E aquela figura não podia vacilar.

Seu nome ninguém sabia. Só conhecíamos o seu apelido que acredito foi lhe colocado justamente por causa do modo que ele andava, gesticulava e conversava: LIGEIRINHO.

Pra se ter uma idéia o homem parecia um disco sendo tocado fora da rotação. Andava como se tivessem lhe dado corda, saindo em disparada, e de repente parava, dava um ré, e retornava o ritmo acelerado de suas passadas. Seus gestos também eram diferentes. As mãos e braços pareciam estar em frente a uma orquestra. A cabeça, virava de repente de um lado para outro, sem motivo aparente. E a voz? Era uma mistura de palavras emendadas, que a criançada não entendia patavina, porém os adultos entendiam e fechavam negócio com a certeza de que Ligeirinho tinha o melhor produto da redondeza. As prestações eram esticadas até onde dava, e ambas as partes saiam satisfeitas.

Corríamos atrás de Ligeirinho, querendo ver se podíamos acompanhar o seu ritmo. Cansávamos e ficávamos com a língua de fora. Parecia não perceber que era seguido, porém de repente, voltava-se, dava aquele risinho que ficava meio escondido sob um bigodinho fino, puxava o chapéu e cobria a metade do rosto. Pronto esse era o sinal de que iria dar uma puxada no seu ¨carro¨. Só não sabíamos dizer se seria pra frente ou pra trás.

Na nossa época não víamos o que se ver hoje. Se Ligeirinho estivesse vivo, ou fazendo aquilo que fazia na rua, seria xingado, quem sabe alguém jogaria uma pedra, ou quem sabe até lhe dariam uma surra. Não é isso que se ouve nos meios de comunicação?

Alguém é morto, ou leva uma surra por causa de sua cor; sua opção sexual; sua religião; sua etnia, sua aparência, sua origem...

Na minha época, corríamos atrás brincando com ele. Divertíamos-nos com seu jeito diferente de ser. E hoje, haveria lugar para um Ligeirinho?Será que haveria espaço para ele ser o que era?

Preocupa-me esse tema. Vejo as pessoas propagando uma idéia voltada apenas para o eu. Mas pergunto-me: Se só há lugar e vez para o meu eu, onde ficará o meu próximo? Se eu é que determino a hora de virar a página da minha vida, e o que eu quero apagar, e quem eu quero que participe da minha história; onde o meu próximo estará participando do meu crescer e amadurecer ?

Não sou obrigada a crer, aceitar, a virar a chamada ¨empadinha¨, a famosa ¨maria-vai-com-as-outras¨; porém custa-me ouvir,observar, respeitar, permitir que o outro tenha espaço para ser?

Tenho medo, de que essa idéia onde o homem é o centro de tudo, venha a se alastrar; chacinas sejam praticadas e holocaustos voltem a acontecer sob ouvidos que não ouvirão os gritos de socorro.

Sempre estive próxima de pessoas diferentes e todas me ensinaram de uma forma ou de outra, porém coube a mim a tarefa de saber tirar lições das experiências vividas. Se hoje eu cresci devo isso à presença dos ¨diferentes¨ com os quais tive que aprender a conviver.

Ione Sak
Enviado por Ione Sak em 02/03/2009
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