D. Dão

Acordou com o barulho à sua volta, os passageiros deixando o ônibus, pegando suas bagagens, se espremendo no corredor estreito do coletivo.

Que cidade seria esta, quem sou eu, como vim parar aqui?

Quem fazia estas perguntas, era nosso estranho passageiro, tinha 52 anos, mas aparentava muito mais, suas roupas eram bem usadas, mas não era um mendigo, mostrava certo orgulho, certa classe, apesar das roupas e por ele nós podemos dizer que o ditado “o habito não faz o monge “era muito verdadeiro.

Como todos haviam descido do ônibus, nosso amigo também teve que sair estava frio, a rodoviária quase deserta, sentia fome, remexeu nos bolsos e descobriu que também estava sem dinheiro

Caminhou por entre os bancos e procurou um que estivesse vazio, quase todos estavam ocupados, era incrível, havia um verdadeiro batalhão de pessoas dormindo na estação, ele era apenas mais um.

Acomodou-se no banco de madeira, não tinha nenhum conforto, mas o que importava era que havia um teto sobre a sua cabeça, lá fora estava garoando, uma neblina espessa, não havia condições de enxergar a distancia, talvez por isso não tivesse visto as placas que indicavam o nome da cidade em que ele se encontrava.

Encolheu-se o mais que pode e tentou dormir, a agitação havia diminuído o que se ouvia agora era apenas o barulho dos pingos no teto de zinco da estação, estava sem blusa, apenas uma camisa social bem usada, a calça de tergal não conseguia segurar o frio que parecia cortar as suas entranhas, que bom se conseguisse dormir, esqueceria a fome, o frio e poderia sonhar.

Sonhar aquece a alma

Era incrível o frio que sentia nos pés, sentou-se no banco para descobrir o porquê de tanto frio, e a resposta estava ali, seus sapatos eram bem usados, mas o que chamava a atenção de quem olhasse, era o pedaço que faltava no pé esquerdo do sapato, o dedão estava de fora, a meia rasgada e aquele dedo olhando o mundo.

Apanhou um pedaço de jornal e escondeu o dedo curioso, agora sim poderia dormir e dormiu um sono agitado, cheio de imagens que ele não conseguia entender, via uma mesa, uma cadeira, era um escritório, mas estava vazio, havia muitos papeis sobre a mesa, mas ele não conseguia identificá-los, um corredor comprido e outras salas, tudo estranho, não conhecia aquele lugar, de repente as imagens mudavam agora era uma cela fria, sem iluminação. Apenas uma cama sem colchão, não era um colchão o que havia, era uma espécie de colchonete, úmido, mal cheiroso, uma latrina, uma caneca amassada e um prato vazio de plástico, para ele também era estranho, jamais havia visto aquele lugar, nem mesmo em filmes.

O dia amanheceu e nosso amigo saiu junto com os outros da rodoviária, era um contraste, mendigos, indigentes, mulheres com crianças no colo, parecia uma procissão dos desesperados, o contraste era justamente o nosso amigo, perto daquela gente parecia um príncipe, difícil explicar o porquê, afinal não estava vestido com pompa, estava apenas um pouquinho melhor que os outros, estava limpo, amassado, mas limpo e havia aquele dedão, parecia um estandarte e nosso amigo a baliza do desfile.

Na rua houve a dispersão, cada um para o seu lado e nosso amigo ficou só, ficou parado esperando a vida passar, ou que alguma coisa acontecesse, o estômago doía de fome, mas ir para onde, não conhecia ninguém, não sabia que cidade era aquela não sabia nem mesmo o seu nome.

Teve que tomar uma decisão rápida, dois policiais chegaram e o mandaram circular, sem outra opção saiu caminhando sem destino, andando pelo meio fio, ou seja, nem na rua nem na calçada, apenas andando seguindo as guias que dividiam uma de outra.

Não era uma cidade pequena, mas também não era uma metrópole, havia muitas lojas e muitas pessoas andando pelas calçadas, o movimento do transito foi aumentando e ele deixou o meio fio e passou a andar na rua ao lado dos carros que estavam estacionados, parecia um zumbi, andava sem saber para onde seus pés o levavam distraído olhando vitrines, olhando as pessoas, e essa distração acabou custando muito caro.

Ao chegar a um cruzamento, não olhou para os lados e aconteceu.

A pancada foi muito forte, arremessado a alguns metros adiante, tudo escureceu, ainda ouvia as pessoas em volta, o som foi desaparecendo e desmaiou.

CAPITULO II

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- Acorda Maria, você vai perder a hora da faculdade, levanta menina já são sete e meia, as aulas começam as oito, bela medica você vai ser, se depender da sua vontade muita gente vai morrer sem socorro, resmungava D. Helena, tentando acordar a filha.

Maria Emilia finalmente acordou, tomou seu café correndo e saiu em disparada para a faculdade, a mãe ficou resmungando, quero ver quando eu morrer, quem vai fazer o café, o almoço, lavar a roupa, essa menina precisa é casar.

O carro não queria pegar, maldito carro velho resmungou a moça, em seguida procurou achar uma desculpa para o carro, também havia feito muito frio à noite, uma tentativa mais e finalmente o automóvel respondeu ao comando e funcionou, dando graças, Maria Emilia saiu em disparada, não podia mais perder aulas, estava no ultimo ano de medicina e as aulas agora eram praticas, nada de livros, as aulas eram ao vivo no hospital da cidade.

A pressa é inimiga da perfeição e Maria Emilia sentiu isso na carne, mas a carne não era dela, era do nosso amigo distraído, ao fazer a curva ele surgiu do nada e Maria Emilia não teve como evitar o atropelamento, acho que nem um bom piloto conseguiria evitar o acidente e a jovem com certeza não era uma boa motorista.

- Maldição resmungou a moça, de onde saiu esse bóia fria, tá tentando se matar o maluco.

O choque foi violento e amassou o carro da moça, abriu a porta e tentou socorrer o nosso amigo, havia sangue, ele havia batido a cabeça e estava inconsciente.

- Calma Maria, não se desespere, tudo tem jeito, sangue frio menina, agora é hora de usar os seus conhecimentos de primeiros socorros.

Já havia uma multidão em volta do nosso amigo e uma das pessoas que tinham chegado naquele momento perguntou:

- O que aconteceu aqui?

Alguém na multidão disse:

- Atropelaram o DEDÃO

Este mundo é realmente engraçado, aquele dedo, o tal que ficava olhando o mundo terminou se tornando o nome do nosso amigo, agora quando ele acordasse já tinha um nome era Dedão.

Com seus conhecimentos de medicina, a moça não deixou ninguém remover a vitima, deviam aguardar o socorro.

A ambulância chegou, os médicos com o auxilio de Maria Emilia colocaram aquela gargantilha que imobiliza o paciente, transportaram-no para uma maca e nosso amigo foi para a Santa Casa da cidade.

Maria Emilia acompanhou a ambulância em seu próprio carro, seguia pensando no conserto do carro, não tinha seguro, tomara que esse cara tenha dinheiro, tomara que seja um daqueles milionários excêntricos que gostam de se misturar com o povo durante o dia e à noite voltam para a sua mansão, afinal a culpa foi dele, acho que estava tentando se matar e quase me mata de susto.

Ao chegar ao hospital nosso amigo foi para a enfermaria e Maria Emilia ficou para preencher a ficha de admissão no hospital.

O atendente com cara de sono perguntou nome?

- Maria Emilia Cardoso

O atendente sem paciência gritou:

- Não o seu, o da vitima.

Ah. Disse Maria Emilia, não sei, nunca o tinha visto antes, mas ouvi alguém dizer que era o Sr. D. Dão que havia sido atropelado, deve ser este o nome.

- Só isso D. Dão e mais nada?

- Acho que é

- Tudo bem, endereço?

- Também não sei, marca ai o meu

- E qual é?

- Rua Dr. Emílio Ribas, 234

- Ele tem INPS?

Maria Emilia estava perdendo a paciência e disse:

- Como é que eu vou saber, pergunte pra ele.

- Tá, a senhora precisa ir à delegacia e fazer um boletim de ocorrência, qualquer novidade com o paciente nós entramos em contato.

A moça saiu e foi procurar um telefone, tinha que avisar a mãe sobre o que havia acontecido, depois foi até a delegacia, se arrependeu, foi outra chateação.

Se o atendente no hospital estava com cara de sono, o da delegacia estava dormindo, não havia ninguém para atendê-la, sentou-se e ficou esperando, finalmente um cidadão em mangas de camisa apareceu, estava todo amassado, parecia ter acordado naquele minuto, na realidade parecia um dos presos.

Chegou até onde ela estava sentada e foi perguntando de modo grosseiro:

- E a boneca aí, tá esperando o que?

Maria Emilia disse que estava ali para fazer um boletim de ocorrência e não conseguiu terminar a frase.

- Já sei. Roubaram o carro da mocinha, não é?

- Claro que não, meu carro está aí na porta, é que eu atropelei uma pessoa na cidade.

- E cadê ela?

- Ela quem?

- A vitima, o falecido, o morto, o presunto.

- Mas que falecido meu senhor, ninguém morreu, ele está na Santa Casa sendo medicado.

- Tudo bem mocinha, então cadê o guarda?

Maria Emilia nervosa estava quase chorando.

- Não apareceu nenhum guarda por isso eu estou aqui, me mandaram do hospital, eles precisam de um boletim de ocorrência.

- E porque você não disse logo, vamos lá documentos.

Entregou os documentos do carro e sua carteira de motorista, o cidadão com muita má vontade sentou-se e começou a bater a maquina alguma coisa, logo perguntou:

- Como se chamava o atropelado?

Novamente ela não soube dizer, então repetiu o que já havia dito no hospital

- D. Dão.

O policial caiu na gargalhada e começou a fazer piadas com o nome do infeliz.

- O dedão quebrou a perna ou o pescoço, o dedão tá inchado etc.

Não tinha graça nenhuma, mas Maria Emilia deu um sorriso azedo, não convinha contrariar aquele doido.

Depois de muita graça finalmente ele terminou o tal boletim, entregou para a moça e disse:

- Se você tivesse largado ele lá, eu não teria tanto trabalho, vocês acham que funcionário público tem que estar sempre à disposição não é? Com esse salário de fome queria o que? Atendimento cinco estrelas no mínimo. Agora você já sabe se acontecer de novo, se manda e tá acabado.

Voltemos ao nosso amigo, a pancada na cabeça caiu como uma luva para ele, não sabia o nome, não sabia onde morava, não sabia onde estava, maravilha é o que foi a pancada na cabeça, amnésia e isso ninguém podia contestar, palavra dos médicos.

A ficha de admissão chegou a enfermaria onde nosso amigo estava sendo medicado, o enfermeiro olhou o nome e achou estranho o nome D. Dão, nunca tinha visto nada igual. Isso lá é nome de gente, parecia nome estrangeiro, mas nosso amigo tinha cara de brasileiro e o enfermeiro acabou dando um sobrenome ao nosso amigo, SILVA.

Agora sim, pensou o enfermeiro, D. Dão Silva, isso sim é nome de gente, nada de nome estrangeiro, tudo ladrão, tudo safado, Silva não, Silva é nome de metade do Brasil e esse nosso amigo pelo jeito é brasileiríssimo.

O tempo passou e como dizem que “O tempo cura todos os males” Dão se recuperou do acidente, ainda não se lembrava de nada, só se lembrava daquela senhora e de sua filha que vinham sempre visitá-lo, trouxeram roupas, comida, aparelho de barba, escova de dente, etc.

Agora sim, Dão estava com tudo, a única coisa que incomodava eram os sonhos, sempre as mesmas imagens, sempre o mesmo sonho. Ultimamente sonhava mais com aquela cela, às vezes vinham uns enfermeiros e lhe aplicavam uma injeção, não sabia do que era, mas ele apagava, acordava deitado naquele colchonete imundo, a comida era uma porcaria, tinha medo de comer e quando se recusava a comer apanhava.

CAPÍTULO III

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Dão já andava pelo hospital, aos poucos já conhecia todo mundo, pacientes, médicos, enfermeiras, faxineiros, se dava bem com todos, tinha uma ótima memória para nomes, não se esquecia de ninguém, assim ia ficando conhecido de todos.

Os passeios já não se resumiam ao corredor do andar em que estava, andava por todo o hospital.

Em uma dessas caminhadas terminou na administração do hospital, passando por uma porta entreaberta ouviu uma moça praguejando e xingando a tudo e a todos, esta ao ver Dão perguntou rispidamente:

- E você o que quer?

Dão, muito educado, perguntou se podia ajudar?

- Ajudar como respondeu ela, você entende grego?

Dão sorrindo disse:

- Claro que não, mas posso aprender.

Agora quem riu foi ela.

Ana Lúcia, esse era o nome da moça, acabou gostando de Dão e ficaram amigos, volta e meia ele ia a sua sala e ajudava no serviço que ela tanto odiava e realmente o serviço de Ana era ingrato, tinha que traduzir o que os médicos escreviam nas fichas dos pacientes e transcrevê-los a maquina para uma ficha da administração, segundo ela garrancho não tem tradução.

Como já dissemos Dão começou a ajudá-la e somente ai descobriu que sabia bater a maquina, tinha conhecimento de cálculos, não era mais um Silva analfabeto, não era um bóia fria como ele ouvira alguém dizer.

Dão realmente inspirava confiança, ainda mais usando o terno que fora do pai de Maria Emilia, era humilde, educado, simples, conversava com todos, visitava aqueles que não recebiam visitas, sempre tinha uma palavra de conforto, um sorriso.

Passou a fazer parte da mobília, todos conheciam Dão, todos menos a Diretoria do hospital, mas como eles nunca iam lá Dão foi ficando, ganhou um jaleco branco para não sujar o terno. Agora já fazia todo o serviço de Ana e ela aproveitava para se ausentar, viver a vida como ela dizia, sabia que tudo estava em boas mãos.

Com o passar do tempo quem realmente administrava o hospital era Dão, ele já assinava documentos, criava normas, facilitava a vida de todos. Organizava reuniões com os funcionários, criou uma nova forma de atendimento para os mais humildes, enfim Dão era um anjo vestido de branco.

Ninguém se lembrava de como Dão havia chegado ao hospital, os atendentes eram outros, os médicos também, um ou outro havia permanecido e não sabiam a história de Dão, parece que ele sempre esteve naquele lugar, ele comia, bebia e dormia no hospital.

Ana Lúcia deixou o emprego para se casar, e como não podia deixar de ser Dão foi convidado para ser o padrinho, a madrinha claro, a mãe de Maria Emilia, a bondosa D. Helena.

Para a administração do hospital estava tudo bem, ninguém entendia como Dão não tinha salário, melhor ainda, sem Ana os lucros seriam maiores, O nome Santa Casa de Misericórdia era pura fachada.

Como já dissemos Dão assinava memorandos, ordem de serviço, pedidos de compra, era o faz tudo, quem chegasse hoje ao hospital acharia que ele era o Diretor Administrativo, como assinava todos os documentos com seu nome D. Dão Silva, nessas passagens que ninguém sabe explicar de repente D. Dão Silva, virou Dr. Dão Silva e em uma escala que ninguém sabe explicar Dão virou Doutor.

Pois muito bem, como tinha acesso a tudo que se passava no hospital nosso doutor acabou descobrindo as falcatruas da administração do hospital, descobriu como o governo era lesado, descobriu como uma simples dor de cabeça era registrada como cirurgia, uma dor de barriga se transformava em parto.

O grande lesado era o povo da cidade, era o governo estadual, todos perdiam, os pobres aposentados que ganhavam salário mínimo e ainda tinham descontado o INPS é que perdiam.

O roubo era enorme, havia muita gente graúda envolvida, vereadores da cidade, deputados, gerentes de banco, advogados, todos tinham uma parte neste roubo escabroso, uns para fechar os olhos, outros para alterar registros, uma verdadeira máfia.

O difícil para Dão era encontrar alguém integro que não fizesse parte da quadrilha, era difícil, pois não conhecia quase ninguém fora do hospital, não se sabe como sua descoberta também foi descoberta, os diretores do hospital chamaram o doutor para uma reunião, precisavam descobrir o quanto ele sabia, achavam que ele fazia parte do governo federal, que estava chefiando uma investigação, ninguém sabia dizer de onde saíra esse Doutor e mais uma vez o nome de Dão foi mudado.

As reuniões de diretoria do hospital eram realizadas à noite, eram marcadas por telefone, como era tudo em segredo, a esposa de um dos administradores agia como secretária, era ela quem ligava para todos avisando sobre a reunião, como não conseguia falar com Dão enviou um memorando, a referida senhora era de origem alemã e não conseguia pronunciar Dão, toda vez que falava o seu nome, era Dáo e escrevia da mesma maneira, não parava ai as trapalhadas, outra não conseguia pronunciar Silva, toda vez que falava do doutor o sobrenome era Silver.

Impressionante o que a pronuncia errada pode fazer, em muito pouco tempo o nosso desmemoriado sem nome chamou-se Dedão, depois D. Dão, logo em seguida D. Dão Silva, a seguir Doutor Dão Silva e agora seu nome era Doutor Daw Silver.

Pois muito bem, o nosso doutor não compareceu a tal reunião, nem chegou a ver o tal memorando.

A ausência de Daw a tal reunião causou um alvoroço danado entre os participantes, sentiam a terra faltar sobre seus pés e agora, com certeza o Dr. Daw estava preparando um dossiê sobre todos e pronto para enviar aos seus superiores.

J. Silveira Júnior pediu a palavra, ele era um vereadorzinho que havia sido eleito com menos votos que o necessário, aliás, ele era um suplente, do suplente e para variar o jeitinho brasileiro o havia levado o tal a ocupar uma cadeira, o fato tem que ser explicado, quem foi eleito assumiu, ficou exatos 30 dias e pediu licença para tratamento médico, assumiu o suplente que em seguida pediu licença para acompanhar deputados federais do partido em uma viagem sem fim, ai está J. Silveira Junior vereador.

Pois muito bem, atendendo o aparte do nosso vereador, foi lhe concedida a palavra. J. Silveira Júnior limpou a garganta e se preparou para fazer um discurso, mas foi interrompido por um deputado que disse:

- Fala logo Silveira, não fica enrolando

Então Silveira disse que sabia por fonte fidedigna que estava sendo criada uma CPI no senado para apurar irreguralidades na previdência Social.

Era a bomba que faltava, os integrantes da reunião passaram a se agredir com palavras, ninguém era culpado, os ratos queriam abandonar o navio, era um jogando a batata quente para o outro e a reunião terminou sem que nada fosse feito, por via das duvidas muitos já preparavam as malas.

Voltemos ao Dr. Daw, ou melhor, Dão, ele estava com a faca e o queijo na mão, mas alguma coisa impedia que ele tomasse qualquer decisão, sentia-se preso por uma força estranha, aquilo que estava acontecendo não lhe era estranho, por alguma razão que não conseguia explicar já havia passado por uma situação parecida, apesar de toda revolta nada fez, continuou tirando cópias de documentos e guardando para uma ocasião futura.

O carinho que Dão tinha com os pacientes do hospital era o mesmo, foi convidado para ser padrinho inúmero vezes de crianças que nasciam no hospital, casamentos, era convidado a dar palestras na faculdade, padrinho ele foi inúmeras vezes, mas na faculdade nunca foi.

Na cidade todos falavam maravilhas do Dr. Daw, para os mais humildes um anjo, para os corruptos um demônio, um anjo vingador.

Nas esferas mais altas da cidade, a coisa começou a acontecer, a quadrilha começou a se movimentar. O Dr. J. Silveira, aquele vereador pediu em plenário que fosse dado o titulo de cidadão benemérito da cidade ao Dr. Daw, por serviços prestados ao bem estar da comunidade, um homem sem igual, uma liderança que a muito faltava no nosso país, estava morando e trabalhando na nossa cidade.

Muitos políticos agradeciam aos céus o fato do Dr. Daw ser de origem estrangeira e, portanto impossibilitado de concorrer a qualquer cargo publico, se pudesse com certeza se elegeria com facilidade.

Era muito grande o carisma de Dão, impressionante a calma e a segurança que transmitia a todos que o procuravam e não eram poucos, alguns encaminhava para outros hospitais em cidades próximas, para outros conseguia empregos e assim por diante.

Dona Helena e Maria Emilia também passaram a ocupar uma posição na ascensão de Dão, a mãe virou secretária e a filha porta voz do Dr. Daw. Não era fácil marcar uma entrevista com o Doutor em compensação estava sempre disponível para os mais humildes.

A vida de nosso amigo mudava a cada dia, uma rapidez impressionante, e como eram muitas pessoas procurando pelo famoso Dr.Daw, o partido da oposição, aquele que não ganhou e que tinha minoria na assembléia, encontrou uma forma de arrecadar votos visando a próxima eleição.

Próxima é o modo de dizer, ainda faltavam pelo menos dois anos para que viesse acontecer.

Pois muito bem, o tal partido colocou em votação a idéia de um vereador, e eles aprovaram a proposta, e decidiram montar um escritório para o Dr. Daw, com direito a secretária que claro seria Helena e também um porta voz Maria Emilia, com direito a verba de representação e tudo que de direito, teria que ser no centro da cidade e não muito distante do hospital, a idéia era usar o prestígio de Dão e através deste escritório poderiam fazer oposição ao Prefeito e seus aliados e mais usando o escritório para promover seus candidatos junto à comunidade.

Uma verdadeira guerra política estava sendo travada nos bastidores, e o nosso Dão era a figura principal, sem saber, tudo que lhe era oferecido era aceito, sem maldade ou má intenção.

Dão era inocente, somente aos poucos conseguia descobrir suas habilidades, descobriu que sabia bater a maquina, fazer cálculos, organização empresarial, às vezes até ele ficava admirado de suas habilidades, portanto quando lhe davam um escritório, ele achava a coisa mais normal do mundo, achava que aquele escritório sempre havia sido seu, que sempre fora da administração do hospital, que aquele carinho das pessoas era normal, sempre fora querido, pena que não se lembrasse de nada.

CAPITULO IV

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A guerra entre os políticos continuava intensa, como o partido minoritário havia montado um escritório para o Dr. Daw, eles, os do outro partido tinham que fazer alguma coisa que causasse um impacto ainda maior no coração do Dr. Daw.

Pela primeira vez em toda a sua carreira publica o Dr. J. Silveira teve um projeto de lei aprovado, pela maioria e sancionado pelo prefeito.

O Dr. Daw Silver iria receber o titulo de cidadão Montaltense, e os presentes e homenagens não paravam aí, um dos vereadores, por sinal filho de fazendeiros da região e também envolvido no golpe da previdência, cedeu seu carro com motorista para servir única e exclusivamente ao Dr. Daw, nada mais justo para um legitimo representante das classes.

O carro foi um presente muito bem aproveitado, nunca aquele motorista trabalhara tanto, era usado como ambulância, carro de entregas, levava pessoas para as cidades próximas era o Dr. Praticando caridade.

No escritório do Doutor era um entra e sai danado, pessoas humildes procurando ajuda, políticos buscando apoio, empresários da região buscando facilidades junto aos órgãos públicos, uma verdadeira massa humana se aglomerava todo dia em volta do tal escritório.

Os mais humildes eram sempre atendidos por Dão, os políticos paravam em Maria Emilia, o Doutor nunca estava disponível.

Certa vez um grupo de empresários que estava tocando um projeto de urbanização nos arredores da cidade procuraram por Dão, não conseguiam falar com ele.

Este grupo imobiliário tentava há muito tempo a liberação pelo IBAMA de uma área para fazer loteamentos, como era uma área de mananciais e consequentemente proibida à urbanização o projeto estava parado, eles precisavam de alguém para fazer um loby juntos às autoridades.

Mais uma vez o jeitinho brasileiro entrou em ação, usando um pobre desempregado tentaram marcar hora com o Dr. E conseguiram.

No dia marcado para a entrevista com o desempregado quem chegou foram os empresários, não houve como evitar e Dão terminou atendendo o grupo.

Trouxeram fotos, montaram uma maquete sobre a mesa de Dão, ele via e ouvia, não entendia nada, eles pediam o apoio do Dr. Daw, para aprovar o projeto, diziam que iriam construir casas populares e que geraria muitos empregos na cidade.

Dão atendia a todos com uma cordialidade impar, nunca dizia não a ninguém, mas esse projeto ele não sabia como poderia ajudar, não tinha conhecimentos tão altos, não conhecia ninguém do primeiro escalão do governo, aliás, nem sabia quem estava no governo.

Teodoro Paiva, um advogado quase falido tentava de todas as formas conseguir dinheiro e se o tal projeto fosse aprovado, ficaria rico, portanto abraçava a causa com unhas e dentes, pediu a palavra e disse:

- Dr. Daw, o senhor não precisa fazer nada, não precisa se preocupar com nada, nós faremos tudo, só precisamos de seu apoio e sua assinatura no projeto, o resto virá normalmente.

Dão, como nunca disse não, concordou em apoiar o projeto, pensou que maravilha, ainda existe gente boa e honesta no mundo, construir casas populares, ajudar os mais humildes, que gesto bonito.

- Sendo assim, podem contar comigo.

Era tudo que o grupo precisava o apoio de um nome de peso, vocês não sabem, mas corria a boca pequena que o Dr. Daw era um enviado do Banco Mundial e da ONU, e isso explicava o porquê de não ter um salário no hospital, o homem era muito rico, recebia em dólares, devia ter conta em vários paraísos fiscais.

Estes boatos ao invés de prejudicar a imagem de Dão projetavam seu nome cada vez mais alto, os donos do poder faziam tudo para agradá-lo e os mais humildes encontravam em Dão um herói, um cavaleiro medieval que iria lutar contra os poderosos, diziam tão rico, tão culto e tão humilde, um verdadeiro anjo.

Não se sabe como, derepente Maria Emilia era chamada de sobrinha do homem, agora era respeitada, convidada para festas, banquetes, passou a conviver com a alta sociedade, sua mãe então era convidada para inaugurações, palestras como representante do Dr. Daw, um homem muito ocupado, para se ter uma idéia da fama do Dr. Daw, para se conseguir uma entrevista com ele eram necessários vários dias de espera, somente com hora marcada, e quem marcava era D. Helena, a famosa secretaria do Dr.Daw, com isso Helena ganhava presentes, convites, passou inclusive a cobrar cachê para ir a certos lugares, ela também achava que Dão era um anjo enviado para resolver a sua vida.

A tal imobiliária, a mesma do projeto, tinha tanta certeza que conseguiria a aprovação que resolveu presentear o Dr.Daw e claro que não poderia se dinheiro, ele já tinha muito, talvez até se ofendesse, resolveram por bem dar uma casa, não uma casa comum, uma senhora casa.

Depois de várias reuniões um dos empresários disse:

- isso mesmo, vamos dar ao Dr. Daw a escritura de uma casa no centro da cidade. Será uma maneira de amarrá-lo ao projeto.

Foram ao hospital procuraram Dão e disseram:

- Aqui estão as chaves de sua casa.

Dão achou que realmente a casa era sua, agradeceu e agora finalmente alguém descobrira onde ele morava. Impressionante pensou, sempre morei nesta cidade, como é que eu não me lembro.

Outro que fazia parte da quadrilha era o Reitor da faculdade, pensando em se livrar de alguma conseqüência concedeu o titulo de Dr. Honores Causa a Dão.

Como o mundo vira, Dão era agora realmente doutor, com diploma e tudo e mais era cidadão Montaltense, morava em uma mansão, tinha carro, motorista, escritório, secretária e porta voz.

Em seu escritório Dão atendia a todos os tipos de pedidos, pessoas vinham de vários lugares em busca de ajuda e ele as ajudava apenas com o seu nome, um pedido do doutor era prontamente atendido por todos, então ele conseguia empregos, assistência médica, alimentos etc.

Dão raras vezes dormia em sua casa, estava quase sempre no hospital e dormia em um sofá que havia em sua sala, tinha tudo que necessitava ali, um armário onde guardava suas roupas, um banheiro privativo com todo o conforto, almoçava no hospital, atendia no escritório no período da tarde e voltava para o hospital para jantar e geralmente ficava por ali mesmo.

CAPÍTULO V

Geraldo e Estela formavam um jovem casal, ambos estavam desempregados e foram em busca do Doutor, conversaram com Dão e este ofereceu um lar para os dois, poderiam ficar em sua casa, ela cuidaria dos afazeres domésticos e ele ajudaria o Doutor em sua cruzada, por enquanto não poderia lhes dar um salário, mas teriam casa e comida e assistência até que as coisas melhorassem, eles rapidamente aceitaram.

A grande verdade é que o doutor tinha medo de ficar em casa, aquele sonho jamais deixara de acompanhá-lo e toda vez que sonhava, acordava assustado, suando frio e o coração batendo apressado e sem ritmo, estando no hospital se sentia seguro.

Jamais havia comentado com qualquer pessoa sobre o seu sonho, era um sofrimento particular, gostaria de entender o significado dele, mas não tinha com quem comentar, não tinha nenhum amigo para dividir suas amarguras.

Por falar em amigo, Dão encontrou um, seu nome era Marcos Lourenço Gouveia, profissional do hospital psiquiátrico da cidade, ele era um dos poucos que se lembrava de como Dão havia chegado ao hospital, no começo havia se interessado pelo caso, mas como os acontecimentos haviam se precipitado, ele também achava que Dão era realmente o Dr. Daw e que este tivera uma crise de amnésia, mas já estava curado e exercendo a sua profissão.

Pois muito bem Dão e o Dr. Marcos conversavam muito, às vezes ficavam até tarde da noite no escritório de Dão, saiam para jantar e Marcos sempre que podia ajudava Dão na tarefa de ajudar os menos favorecidos.

Depois de muito pensar e avaliar nosso amigo resolveu se abrir com Marcos e contar sobre aquele sonho que o acompanhava.

Marcos ouviu em silencio e entendeu o drama que o amigo devia estar passando.

Durante alguns minutos ninguém disse nada, foi Marcos quem falou:

Meu amigo, se eu disser que já ouvi muitos casos parecidos com o seu talvez você duvide, mas a grande verdade é que a maioria dos pacientes do hospital tem ou tiveram algo parecido com o seu sonho.

Dão pensou com seus botões:

- Então eu estou ficando louco? Vou acabar internado.

Marcos continuou falando e Dão voltou a prestar atenção

- A mente humana Doutor é um labirinto com várias passagens e apenas uma saída, os sonhos podem levá-lo a saída ou podem deixá-lo perdido neste labirinto, muitos dos meus pacientes estão nesse labirinto e eu não consigo resgatá-los, Como eu disse, no princípio, tal qual o senhor está me contando agora, eles conversam, o estágio seguinte é a depressão e eu sou obrigado a medicá-los e assim eu os vou perdendo aos poucos.

- E o senhor acredita que pode me ajudar?

- Com toda certeza amigo.

A partir daquele dia Dão passou a dividir com Marcos todas as suas descobertas e este se mostrava muito interessado nas provas que nosso amigo havia conseguido, Dão, inocente entregou tudo a Marcos e este falou que ia estudar os documentos e no dia seguinte daria um parecer.

Naquela noite Dão estava em sua sala no hospital quando chegaram dois enfermeiros, agarraram nosso amigo e o sedaram, começava naquele momento seu maior pesadelo.

Acordou assustado, olhou em volta e achou que ainda estava dormindo e sonhando aquele mesmo sonho, a mesma cela, o mesmo colchonete imundo, o prato de plástico imundo, só a luz era diferente, a claridade o cegava, sentou-se no chão e ficou olhando para as paredes.

A porta da cela se abriu e os dois enfermeiros entraram, nova dose de medicamento e em seguida um medico entrou.

- Como o senhor está passando? Sabe seu nome? Sabe onde está agora?

Dão não sabia de nada, não tinha lembrança alguma de ninguém, só aquela cela lhe era familiar.

O doutor chamou os enfermeiros em um canto e disse:

- Vou comunicar aos interessados que a ameaça se foi, não podemos matá-lo e nem podemos mantê-lo aqui, vamos deixar o destino dele nas mãos dele, vistam- no com algumas roupas e a noite o levem até a rodoviária, comprem uma passagem para qualquer lugar e o coloquem no ônibus, não se esqueçam da dose certa de medicamento para que ele durma o tempo todo, assim o Doutor Dão vai desaparecer da mesma maneira que surgiu.

- Fique tranqüilo Doutor Marcos ninguém jamais irá saber como ele desapareceu.

FINAL

Acordou com o barulho à sua volta, os passageiros deixando o ônibus, pegando suas bagagens, se espremendo no corredor estreito do coletivo.

Que cidade seria esta, quem sou eu, como vim parar aqui?

Fim

20/03/2009

Gil o sete
Enviado por Gil o sete em 20/03/2009
Reeditado em 20/03/2009
Código do texto: T1497357
Classificação de conteúdo: seguro
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