Réquiem para um beija-flor

Há poucos beija-flores na minha casa. Houve uma época nós colocávamos aquelas garrafinhas com água e açúcar para alimentá-los e muitos deles se serviam ali, mas li que aquilo poderia ser um “veneno” para as ágeis e lindas avezinhas. Segundo os estudiosos do assunto, haveria a probabilidade de proliferação de um fungo naquela mistura; atacaria a língua dos bichinhos e eles morreriam por não mais poder se alimentar. Como sabemos a principal função daquele bico e língua compridos é coletar alimento no fundinho das flores. Plantar ervas de cujas flores eles possam se abastecer. Eis a solução natural e lógica.

Deixei de vez de pendurar na varanda lá de casa as tais garrafinhas com aquelas flores ridículas. Normalmente eu as retirava, pois não são necessárias para que os bichinhos alegres e confiantes encontrassem a fonte do alimento e dela se deliciassem.

Recordo-me de que os maiores normalmente tomavam conta da garrafinha e enxotavam os menores. Agora poucos aparecem quando há flores e percebi já há algum tempo uns pequeninos colhendo seu alimento das plantas que a Isa cuida. Especialmente da que cresce na entrada da casa, constituída por uma haste tão verdinha de dar vontade de comê-la e com uma florzinha vermelha bestinha, bestinha - só vendo! - Mas deve ter sempre muito néctar. Volta e meia colibris pouco maiores que uma vespa mangangaba a visitam e julguei até que eles neste ano fariam seu ninho por ali mesmo. Além daquela há muitas outras flores com mel e eles não precisarão voar para muito longe, mesmo porque eu maldei serem malandros: pousavam tanto quanto voavam. Coisas que beija-flores pouco fazem: pousar onde quer que seja.

Uma tarde eu estava com a minha doçura Alice – para quem ainda não sabe, minha neta – na varanda esperando pelo caminhão do lixo passar (programa predileto dela). Ela pendurada no meu pescoço, mas a minha idade e a dela estão se tornando incompatíveis, estão de birra: eu definhando e ela crescendo e pegando peso. Mas avô está aí pra quê? Como nos entenderemos dentro em breve? Deixe este problema chegar; depois estudaremos uma solução.

Então ela disse excitada:

Pipiu! Pipiu, Vô!

Não sabia ainda falar passarinho. O dedinho reto apontado para determinado local numa mesa ali postada. Olhei bem: emoção contida para não contaminá-la ainda com as peçonhas do mundo adulto. Olhei! Lá estava um daqueles colibris pequeninos, meus amados companheiros das tardes em que a gente fica matutando, matutando e eles ali para nos ajudarem a desparecer os maus pensamentos ou enriquecer aqueles outros que a gente somente deveria ter. Quem não há de se encantar ao ver um beija-flor voar, parar, beijar a flor, recuar e depois sair em disparada? Pois foi uma dessa disparada que o matou, com uma trombada em uma vidraça da parte frontal da nossa casa.

Ele estava caído inerte, sereno, numa uma caixa qualquer. Peguei e o coloquei sobre o tampo de vidro da mesa. Quietinho. Disse para Alice tocá-lo com seu dedinho. Tentou e recuou, olhando-me com aqueles olhinhos significativos. Estava medrosa. Demonstrando ansiedade, segurava as mãozinhas presas junto ao peito e me olhava com os olhinhos marejados e suplicantes para que eu fizesse algo. Disse-lhe mais uma vez para ela tocá-lo, pois ele estava “mimindo”. Nunca, em tempo algum, eu tivera a ousadia de dizer-lhe que estava morto. Ela ainda não deve ter nenhuma noção de que só o animal humano adulto tem: consciência da morte. Haverá um tempo para isto. Infelizmente.

Não o tocou apesar de haver tentado colocar seu dedinho no corpo sem vida da avezinha mais uma vez. Recuou e ameaçava chorar. Então o peguei, coloquei na minha mão espalmada e alisei as suas peninhas de coloração variada e indescritível. Ela confiou em mim, encorajou-se, apanhou-o com a sua mão e alisou também as suas penas. Saiu correndo e chamando pela avó. Me desliguei da cena e nem notei se o tempo passara. Daí a pouco, Isa perguntou-me pelo pipiu e ninguém sabia.

Voltei à varanda. Estava ele na mesma caixinha onde ela o achara. Recolocou-o lá, mas quando eu ainda estava tentando entender o porquê de uma criaturinha como aquela morrer, - por que não eterna? - Ela pegou o beija-flor delicadamente, colocou-o na palminha da sua mão alisando suas peninhas da cabeça às últimas da cauda várias vezes. Por fim, elevou vagarosamente as duas mãozinhas em forma de concha, trouxe-o junto à boca e deu beijinhos no seu bico. Feito, recolocou-o no mesmo lugar e voltou às suas brincadeiras prediletas. Nada daquilo que se passou esteve fora da rotina inevitável de uma vidinha que apenas se inicia e de outra que termina.

O réquiem para um beija-flor foi encantadoramente mudo. Nenhuma palavra. Nenhum cântico. Gestos, gestos. Sensíveis gestos; carícias profundamente tocantes e inimagináveis de uma criaturinha ainda poupada do que seja a morte. Confunde ou ainda não sabe avaliar o belo e o morrer.

Tudo se encerrou de modo soberbo: um beija-flor sendo beijado por uma florzinha apenas desabrochando.

Quarta-feira, 25 de julho de 2007.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 25/03/2009
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