Cara de sorte

Acordou cedo, fez a barba, escovou os dentes. Rompendo o hábito, tomou café reforçado. A secretária residencial olhou desconfiada. Naquela noite assistiria ao musical em Londrina com a namoradinha. Precisava comer bem e, rompendo novamente o hábito, voltaria para tirar uma madorna depois do almoço.

Estacionou o carro nos arredores da farmácia, recebeu alguns representantes de laboratórios e cobranças do sindicato, orientou o novo funcionário sobre a organização do estoque. Almoçou bem, dormiu bem, acordou bem, assinou alguns cheques, despachou pacotes de medicamento para o hospital e para o lar de descanso da melhor idade, guardou dinheiro no cofre.

Antes das nove na casa da namoradinha. O padrasto atendeu. Olhou-o dos pés à cabeça, apontou o sofá. A indiferença é que me mata, pensou, assistindo a um programa qualquer de televisão. Em quinze minutos aparecia, trajando um vestido de alças vermelhas, em plena harmonia com os cabelos, as cores do batom e do esmalte, a suavidade da maquiagem.

Durante o trajeto de Assis a Londrina, pensou no dia que tivera: nenhum problema, nenhuma angústia, nenhuma discussão. Até as cobranças do sindicato recebeu-as numa boa.

Dali em diante ficou meio receoso, temeroso de que um problema maior explodisse. Diminuiu a velocidade, olhava bem antes de ultrapassar ou se deixava ultrapassar com facilidade, demorava em atender aos pedidos de meia-luz. Num minuto em que, exalando carinho e romantismo, a namoradinha colocou a mão esquerda no seu ombro direito, deu um grito e quase perdeu a direção.

- Tudo bem? Perguntou assustada.

Entraram tranqüilos em Londrina, mas tentando relaxar, tirou o pé direito do freio enquanto o esquerdo permaneceu na embreagem. O carro encostou no da frente. O proprietário saiu alterado, proferindo palavrões, maldições e xingamentos.

Ele suou frio. Acabaria a noite sem mesmo tê-la começado. A polícia demoraria a chegar, fazer o boletim de ocorrência, conferir dados e, finalmente, liberar os envolvidos. Porém, o motorista limitou-se a olhar, olhar bem, olhar para ele e dar-lhe sinal positivo.

Durante a apresentação gritou, berrou, pulou, dançou. O mal que temera se dissuadira no gesto positivo do motorista.

Na volta, a namorada cantava e contava os momentos de que mais gostara, elogiava o serviço de bar. Ele falou bem da afinação dos instrumentos, da pontualidade do grupo. De um estalo telepático, ambos começaram a cantar quando, clicando em espaços regulares, o guarda deu sinal de luz.

Um estalo repentino. Ao depositar dinheiro e papéis importantes no cofre da farmácia, colocara também os documentos do carro e a carteira.

Já pensava no sogro: irresponsável, cretino, incapaz de organizar uma viagem de curta distância. Despesas com multas, guincho, transporte de volta a Assis e, depois, de Assis a Londrina para resgatar o automóvel no estacionamento da empresa de trânsito, advertências. Se algum concorrente descobrisse – a concorrência entre farmácias acirrava-se – espalharia a história e sua reputação, assim como a da farmácia, iria por água abaixo.

Parou, baixou o vidro e esperou.

Os cinco metros entre o guarda e o carro, vencidos passo a passo, como se uma trilha sonora macabra acompanhasse simetricamente cada batida abrupta da bota de cano alto no asfalto, transpiravam-lhe angústia. Leu a placa do carro, aproximou-se da cabine, iluminou as faces do motorista e da acompanhante.

Um fio contínuo de suor escorreu-lhe pelas espinhas. O coração – parecia um coração de coelho depois da corrida – acelerado. O tremor das mãos disfarçado pela escuridão da madrugada.

- Vocês são de Assis? Indagou firmemente.

- Sim. Estamos voltando do espetáculo do...

- Sei, sei. Daquele cara que faz malabarismo na bateria. Daquela banda do Rio?

- Isso mesmo.

- Rapaz, não fui porque tinha de trabalhar e ninguém quis trocar o horário comigo. Ok. Podem ir. Boa viagem e dirija com cuidado.

Depois disso, transpôs os cinqüenta quilômetros entre a divisa e a Assis com as pernas tremendo, a voz entrecortada, uma aflição danada.

*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 26 de março de 2009.