Linguagens

Anos atrás aceitei o convite de um colega de mestrado para hospedar-me em sua casa enquanto participava de um congresso de história política em São Luiz Gonzaga.

- Daqui sai ônibus a todo instante. Se quiseres, posso te arranjar um carro. Roque Gonzales é uma cidade maravilhosa.

Lisonjeado, aceitei o convite, embora tivesse de acordar mais cedo para me locomover ao local do encontro.

Raul dividia o confortável sobrado com a esposa, duas filhas e o pai. Assim que cheguei, a esposa e as filhas me recepcionaram mostrando as dependências da casa e convidando-me para comer um bolo de chocolate com cobertura de chocolate e recheio de chocolate.

Quando falávamos do frio intenso, percebi a esposa e as filhas do meu amigo silenciarem rapidamente. As faces da esposa tornaram-se tensas. As das meninas, amedrontadas. Pelo hábito, ouviam os passos discretos e cuidadosos do pai de Raul que abriu a porta da rua, deixando o vento atravessar levemente a sala.

- Boa noite! Eu sou... Antes de continuar, olhou-me rapidamente da cabeça aos pés, entrou e bateu a porta do quarto. Extrovertido, contei alguma cena engraçada de uma viagem que despertou o sorriso coletivo.

As palestras do início da semana transcorreram tranquilamente, mas as da tarde e as da noite de quarta-feira foram suspensas em razão da perda do vôo dos conferencistas. Cheguei à casa de Raul mais cedo, procurei por todos, mas lembrei que meu amigo chegava depois das dezenove horas quando diariamente saía da coordenação de uma faculdade, pegava a esposa no trabalho e as meninas na escola.

Sem vestígios do pai dele, fui ao meu quarto, peguei um disco de Ravel, lancei-me ao sobrado, onde funcionava uma mistura de escritório, sala íntima e adega, peguei uma garrafa de vinho deixada sobre a mesa, enchi meia taça, coloquei o volume do som no último. Sentei-me. Bebia pequenos goles enquanto via o espetáculo do crepúsculo que coincidiu exatamente com o tempo da música e o fim do líquido.

- Que língua é essa?

Se eu não a colocasse de lado, a taça se quebraria. Quem fazia a pergunta era Sr. Antero, pai de Raul. Ouvira aquele barulho e a curiosidade o guiara imperceptivelmente.

- Acho que é italiano.

- Você fala italiano?

- Não falo nem entendo uma palavra.

- Se você não fala, como entende a música? Perguntou-me, levantando-se inquiridoramente.

Ficaria em silêncio até que ele caísse em desânimo e se retirasse, entretanto a voz de meu pai soprou na consciência: uma pessoa que vivia daquela maneira – Antero brigara não apenas com a nora e as netas, mas também com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, os vizinhos... – estava em profundo sofrimento mental.

- A música ultrapassa os limites da compreensão. Em muitos casos não precisamos entender a letra. Precisamos sentir e, se possível, decifrá-la amorosamente. Sentir a música: exercício da epifania.

- Epi... o quê?

- Significa que a música é algo que vem dos anjos e dos deuses e que nós, não somos nem anjos nem deuses, não podemos entender, porém podemos sentir e tentar decifrar.

Saiu fechando bruscamente a porta. Raul nada comentou nos dias posteriores nem na sexta-feira. Depois das últimas apresentações, arrumava minha mala para viajar no dia seguinte.

Despedi-me das meninas naquela noite. Elas ficavam acordadas até tarde. Da esposa de Raul me despedia no sábado de manhã, antes de entrar no carro que me levaria à rodoviária, quando o sr. Antero apareceu no portão da rua. A esposa de Raul estremeceu. Não pude deixar de notar o desconforto de meu amigo.

- Boa viagem. Disse o pai, para surpresa do filho e da nora que não entendiam a cortesia e a cordialidade com as quais o velho me tratava. Se eu aprender italiano eu entendo aquela música?

Tomei as chaves do carro das mãos de Raul, abri o porta-malas e retirei uma de minhas malas. Coloquei no chão minhas roupas, meus livros, meus sapatos e, do fundo dela, arranquei a caixa de porta-disco de onde expeli o CD de Ravel.

- Não precisa aprender italiano, disse-lhe entregando cuidadosamente o disco, basta sentir a música e tentar decifrar a epifania que emana dela.

Agarrou o presente. Abraçou-me.

Faz tempo que não falo com Raul. Não sei se as relações entre o pai e ele ou entre o pai e a esposa ou entre o pai e as filhas ou entre o pai e outras pessoas melhoraram. Sei que, todas as tardes, quando o crepúsculo inicia o espetáculo natural, sequer preciso fechar os olhos para sentir-me em Roque Gonzales e ouvir a estrondosa melodia da ópera de Ravel preencher de epifanias o lugar onde estou.

*Conto premiado no 12º concurso literário Missões - 2009 – Roque Gonzales/RS.