O japonês

Vovô tinha bico de papagaio. Todo mundo sabe do que se trata. Ele vivia reclamando das dores nas costas e uma outra que começava nos quartos e descia perna abaixo e se alojava nas solas dos pés. Isso o amargurava ou servia de motivo para reclamar, nunca se sabia com certeza ou, mais provável, as duas coisas.

Com mais de oitenta anos tinha esperança e corria obstinadamente atrás de um modo ou um tratamento que o curasse. Acreditava nisso como um dogma, uma verdade que ainda haveria de encontrar. Acho que nunca passou pela sua cabeça que a situação tenderia a piorar com a idade, com o ocaso cada vez mais perto. Para ele ainda iria encontrar um jeito de andar normalmente como nos áureos tempos sem sentir dores ou instabilidade e, quem sabe? Até correr! Ele falava nisso, apesar de eu nunca lembrar de ter visto vovô correndo mesmo nos tempos idos.

Primeiro inventou um forno que muito mais tarde fiquei sabendo tratar-se de um forno de Bier, à matuta. Construiu um com arcos de madeira de moço branco, coberto com um tecido bem grosso e por baixo algumas lâmpadas acesas fornecedoras do calor. Tosco, mas funcionava. A pessoa deitava-se de bruços, colocava sobre ela aquela espécie de cangalha e acendiam-se as lâmpadas. Ficava ali um certo tempo e depois se cobria toda e não podia pegar friagem por algumas horas. Um verdadeiro resguardo. Eu já falei nesse forno quando meu avô caiu do cavalo e o médico disse para colocá-lo no forno e eu, babacão crônico, achei que eles estavam tramando assar o velho. Coisas de crianças jecas e mal informadas.

De vez em quando ele ficava lá. Nada! Uma certa ocasião consultou um médico em Friburgo que prescreveu umas sessões de alongamento, ou coisa parecida. Existia um aparelho que prendia a cabeça do Tiradentes “de araçá” e alguns pesos pendurados faziam a tração. Mas tinha de pagar e coisa que brasileiro nenhum gosta é de pagar médico e professor.

Chegou à roça, chamou o compadre Zé Mafalda e propôs fazer um aparelho igual. Zé nunca tinha ouvido ainda falar naquilo, mas confiou nas informações do velho. Mas meu avô era muito irrequieto, estressado e queria porque queria fazê-lo rápido, mas já modificado. Ele tinha a mania de modificar as coisas. Naquele, a pessoa ficava deitada e os pesos puxavam o pescoço do todo torto por trás. Ele achou pouco eficaz. Propôs que a pessoa ficasse de pé e, através de uma roldana presa ao teto, o peso puxava a cabeça já fixada numa geringonça feita por eles e semelhante a um cabresto de cavalos, passando por baixo do queixo e se fechava por trás, na nuca.

Depois de tudo pronto, foi experimentar. Olha, se o compadre Zé não tivesse presente, acho que vovô teria morrido enforcado. Deve ter colocado de peso um saco de milho ou coisa equivalente, já sabedor que era muito exagerado nas suas atitudes. Resultado: ficou dependurado, sem poder afrouxar as correias que o prendiam ao aparelho e o compadre Zé teve de suspender o peso e botar o velho no chão. Xingamentos vários e aquela cara de deprimido. Sempre ficava assim quando as coisas não corriam como queria ou imaginava. E o compadre Izé não podia rir de jeito nenhum. Tinha que ficar quietinho, quietinho, jururu mesmo. Compartilhar das mazelas do velho João. Desistiu daquilo, coisa também muito fácil para o vovô. Tão depressa queria fazer uma coisa, quanto tão depressa também a esquecia. Fazia parte do seu caráter ou do seu humor; sei lá.

Um dia soube pelo seu Lico que em Friburgo havia um japonês que estava fazendo milagres nesses trecos de coluna. O japonês era tiro e queda.

Vovô apareceu lá em casa. Pediu a Isa para levá-lo naquele mesmo dia ao japonês. Ela lhe disse não ser assim, teria de marcar hora e por ai adiante. No dia seguinte, já cedo estava ele atazanando para ir encontrar o seu salvador, o redentor dos seus sofrimentos. E lá foram. Ele ficou lá, pois disseram que era demorado e depois, de tardinha, ela o pegaria de volta.

Já noite, eu estava em casa sentado, vendo TV. Ouvi o ruído do carro chegando e que alguém descia a escada. Olhei. Era vovô, mas muito estranho. Eu tinha a impressão de que ele ia cair para trás. Estava reto, esticado. Perecia todo empenado para a esquerda e quase arrastando os passos. Pescoço duro, o queixo quase apontando para o alto. Uma caricatura. Ele estava muito diferente, menos em relação a sua cara de deprimido. Tinha certeza de que as coisas não andaram bem.

- Ué! O que houve?

- Aquele japonês desgraçado quase me matou, meu filho! Aquele homem me arrebentou todo! Pegava a minha cabeça, rodava prum lado e pro outro. Depois mandou deitar de bruços e me apertava nas costas, às vezes dava umas palmadas ou enfiava a ponta dos dedos entre minhas constelas. Doíiiiia! Doía à beça! Sentou em cima de mim – veja só! - Pegava minha perna e torcia, encolhia, espichava e não adiantava eu falar que tava doendo. Dava cada soco nas solas dos meus pés que até tinia dentro da minha cabeça. Você já viu coisa assim?

Além disso tudo, meteu o pé dele debaixo do meu sovaco, pegou no meu braço e espichou. Chegava deitar para trás modo fazer mais força. Ó! “Estralava” tudo! Ou ele era surdo ou o danado não entendia a minha língua e não tinha uma triste alma ali para me ajudar. Ainda, no final, queria me botar naquele troço de espichar pescoço e eu pensei: agora ele acaba comigo de vez. Não deixei, não! Então ele falou, tudo enrolado, que eu voltasse amanhã. Olha! Eu não volto naquele japonês nem amarrado! Desgraçado! Aquele homem é um assassino! Praga dos diabos! Raios dos infernos... e despejou toda a sua enciclopédia de xingamentos... Bem vasta, por sinal.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 29/03/2009
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