Córrego dos Índios - Reminiscência

Córrego dos Índios. Por estranho que pareça, eu sinto que temos muito em comum, não só aquele relacionamento ser vivo com outro inanimado ou da alegria de uma criança dentro de um pequeno rio; qualquer criança tem este encantamento em qualquer riacho. Não é isso. Não consigo explicar, não consigo saber como, mas os primeiros sons que ouvi após meu nascimento foram os da queda d’água no engenho do vovô movimentando a grande roda de ferro. Garanto que foram! Tenho a impressão de que no meu sangue de bebê rolaram muitas e muitas gotas daquela água maravilhosa. Sinto que existo porque a natureza deu àquele lugar o Córrego dos Índios, apesar de quase ter morrido afogado lá quando tinha uns cinco ou seis anos de idade.

Fui pescar com meu pai e, sem experiência, pisei no lodo da pedra, escorreguei e fui para o fundo. Não foi difícil para papai retirar-me dali, mas ainda tenho a impressão de que aquele córrego, meu amigo, meu pai, meu irmão, sei lá o quê, iria jogar-me para um vau e não me afogaria. Era só uma brincadeirinha dele! Junto com uma tremenda manha, ainda mantêm-se acesas na minha memória as imagens do meu chapéu de palha e do meu caniço de bambu boiando sobre as águas daquele poço. Se eu o pudesse entender, provavelmente estaria ouvindo gostosas gargalhadas vindas lá do fundo. Roceiro que se preza gosta muito dessas brincadeiras aparentemente idiotas ou inoportunas para um citadino.

Desde o início dos limites da propriedade do meu avô até o seu final eu o conheço bem, convivi com ele muitas e muitas horas de prazer e majestade. Na divisa com o seu Gilo Costa ele inicia o seu passeio por aquelas terras onde nasci e me criei. Corre no sentido oeste para leste e divide a fazenda quase ao meio: na margem direita, terrenos soalheiros, férteis, onde se plantava café, cana, algodão e tudo se tinha de montão. À esquerda ficavam as terras noruegas, próprias para a pastagem e nas grimpas dos morros alguns resquícios da Mata Atlântica ferida, maltratada, lamurienta.

Num canto, o moinho do seu Odílio. Sempre eram fisgados ali alguns acarás ou bagres gorduchos e desajeitados à espreita de farelos de milho desperdiçados pelas mós, pitéus dos mais apreciados. Depois saltava alegre o seu primeiro pulo. Não era uma cachoeira imponente, nada disso; uns dois ou pouco mais de metros, mas ele fazia ali uma algazarra e tanto, até exagerava! Borrifos d’água aos montes, espuminha safada rodopiando na superfície e um punhado de arco-íris mirins dando um verdadeiro porre de encantamento para qualquer retina deslumbrada.

Depois descia ouriçado por aquelas pedras abaixo. Pulava por cima de algumas, desviava-se de outras ou, como moleque travesso, passava, mal-educado, por baixo da saia de algumas maiores, nada cerimonioso. Parecia cabritinho selvagem recém-nascido solto na pradaria e gozando a sua primeira liberdade.

Além fica manso, turvo, metem medo as águas quase paradas e traiçoeiras. Sinal de perigo! É um poço fundo e ele nos sinaliza para passarmos ao largo. Entendemos bem a sua linguagem muda. Dou a volta e desço pela margem esquerda de uma segunda cachoeira. Forte, barulhenta, lançando-se sobre um monte de pedras deslocadas para ali nem faço idéia de quanto tempo.

Chega à Tapera. Escorrega por um lajedo irregular e se enfurna para dentro das cavernas formadas por grandes rochas arredondadas e solidamente presas pelas raízes tortuosas e intimidativas de uma figueira secular, por certo, ali nascida de uma semente trazida pela bosta de um passarinho qualquer. Parece que aquela árvore quer somente para si aquelas pedras; o seu tronco enrugado e retorcido dá-lhe uma aparência sinistra, medonha. Até mesmo o córrego passa por ali com as suas águas rápida, trêmulas, encapeladas, numa vaga tentativa de nos passar a ideia de estar como sua pele medrosa e seus pelos eriçados.

A moita do bambu-açu próxima range ao menor ventinho, causando espanto ao desavisado visitante e o frondoso angico, agarrado à beira da praia de areias branquinhas, inclinam-se sobre o leito do pequeno rio e conferem ao lugar algo lúgubre, dantesco. Com certeza era ali que todos os meus medos de menino se reuniam nas noites escuras e mal-assombradas: lotes de sacis, mulas-sem-cabeça, lobisomens e muito mais que houvesse... Ou não? Poderia ser também um templo de luz e paz. Naquelas noites enluaradas e serenas, lugar de encontro alegre e proveitoso para aquelas benditas almas que por ali já viveram, tiveram ou não seus sonhos realizados, promessas cumpridas, amores repartidos: vovó, vovô, papai, mamãe, Tipedro, compadre Demétrio, Trazito, Véio Cristóvão... Todas lá! Poderia ser! Mortal não pode mesmo entender de imortalidade.

Pega seu primeiro afluente. Vejo-os enlaçados, ele e o Lajeado, braços cruzados nos ombros um do outro, descendo, cantarolando, numa algazarra agitada. E chega pertinho da minha casa, onde caí e quase me afoguei, desce saracoteando por pedras, buracos, pequenas corredeiras; cede parte das suas águas para fazer girar a roda do engenho e continua até a grande laje polida e, em declive, se lança no poço. Era assim e com essa intimidade que nós o conhecíamos. Águas quentinhas na época do verão pelo aquecimento do lajedo sabiamente aproveitado para nos proporcionar prazer e fazer bagunça junto com a gente, moleques pelados de roupas ou compromissos.

As águas deslizando e se esfregando em cima daquela grande laje por esses “ões” de anos, areando e polindo mansamente ora, ora enfezadas e vibrantes, impregnando o ar com o cheiro desagradável da lama na ocasião das grandes enchentes. O pequeno córrego transformava-se, brigava, matava, virava bicho enfurecido. E ia fazendo seu paciente trabalho, lambendo as pontas das rochas, alisando, dando suavidade e brandura àquelas gretas de pedras onde eu ia procurar um cachimbau fugidio e matreiro.

Mais tarde, eu meio menino e quase homem, quando tocava a entrada daquela pequena gruta úmida e lisa, provocava excitações nas zonas de instintos até então adormecidas do meu cérebro. Iniciavam-se agora primitivas e fragmentadas fantasias eróticas impostas pelos novos mensageiros químicos fluindo nas minhas veias, produtos da minha própria evolução, sem que ao menos alguém me consultasse se eu deles necessitava ou se os queria ter.

Escorregando sentado ou de bruços, eu mergulhava nas águas profundas lá em baixo, aflorava de novo rente a grande pedra do lado oposto. Indescritível! Vivi ali toda a minha infância e parte da juventude. Eu faço parte daquele rio... Ou é ele que faz parte de mim? Para nós não faz diferença nenhuma.

De novo ele apanha aquelas águas que cedeu ao engenho e parte para seu trecho final nas terras do vovô. Antes, numa curva do percurso, abriga o Corguinho, aquele onde eu brincava de moinhos e ouvia a patativa gorjear nos ramos dos bambus, sempre fiel guardiã do seu ninho. Passa rápido, faz redemoinhos e vai rodando aqui e ali. Talvez uma grande festa de despedida, cavalheiros engalanados e meninas-moças tímidas e frágeis, rostinhos encantados, dos vestidos rendados e das cinturas finas adornadas de fitas esvoaçantes, girando, dançando uma melodia só ouvida por aqueles adoráveis fantasmas criados pela minha imaginação pueril.

Entra no açude. Cortaram as suas corredeiras e o represaram para mover mais moinhos. Ele está triste e mesmo quando se lança sobre o amontoado de pedras e argamassas colocadas ali por mãos escravas, não vibra, está acabrunhado, profundamente deprimido.

Depois de mais de sessenta anos, passei pelo bambuzal e olhei o lado oposto. Uns pingos ali, outros acolá. Parecia chorar. Sentei numa pedra, encolhi minhas pernas, apoiei os meus braços sobre os joelhos e fiquei com o olhar perdido. Triste também. De repente, alguns borrifos de água fresca molharam o meu rosto. Saí daquela letargia momentânea e agucei o olhar. Não havia um ventinho sequer. Esbocei um sorriso e fiquei alegre de novo. Ele veio estar comigo, me afagar, confortar ou somente fazer companhia. Só podia ser isso!

Levantei-me e me aproximei das suas águas pendentes. Queria molhar as mãos, o rosto, cabelo; queria integrar-me com meu amigo mais uma vez. Escorreguei no limo, caí sentado e me molhei todo. Fiquei ali na água morna por algum tempo com a sensação de estar ouvindo uma gargalhada gostosa, familiar, inconfundível. O sacana se lembrou de mim e do nosso primeiro encontro. Eu tive certeza disso.

Que bom! Que doce delírio!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 30/03/2009
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