Moinhos

Lá na fazenda onde nasci e me criei, há um córrego. Nasce e desemboca dentro dos limites da propriedade que era do meu avô. Pequeno na extensão e volume e por isso é o Corguinho. Inicia-se ali do que sobra da cacimba do Luiz Lucas, percorre uns seiscentos, setecentos metros, pega mais uma nascente aqui, um outro fiozinho d’água ali, atravessa a estrada dentro de um bueiro grande e escuro, logo depois se lança em uma cachoeirinha por uma lasca na pedreira e continua abaixo, margeando o pomar de mangueiras, misturando-se às águas do Córrego dos Índios. Hoje tudo está mudado, nem a cachoeirinha existe mais, nem os pés do embiruçu, enormes, retos, apontando e entrando vigorosos pros céus adentro.

Logo abaixo daquela queda o pequeno córrego sumia e se esparramava todo e, por baixo das várias pedras, emergiam vários outros pequenos canais que deslizavam até se reunirem para reconstituir o curso e caminhar até a foz.

Eram nesses braços que eu e Guilherme represávamos e construíamos nossos moinhos e brincávamos. Guilherme, meu amigo, parente longe e irmão de leite. Era comum que mães que já amamentavam se oferecessem para alimentar nos primeiros dias o recém nascido até sua própria fábrica de leite entrar em plena produção. Essas coisas hoje consideradas bobas, démodés, como fraternidade, amizade e solidariedade, sabem?

Ali existia tudo do que nós necessitávamos para a grande empreitada: água com desnível suficiente, pedras soltas à vontade, bicas feitas com a própria casca do bambu da moita existente não mais longe que uns quatro ou cinco metros, touceiras de inhame roxo. Para o bambuzal, no verão, a patativa voltava todos os anos para fazer seu ninho e perpetuar sua espécie. Pegava raízes do bambu, construía-o lá em cima e entoava o seu canto maravilhoso.

Então fazíamos uma pequena represa. Apanhávamos uma bica de casca do bambu, fazia a setia e colocava por cima. Escorria aquele filete rápido. Cortávamos dois pedaços de bambus finos ou talos do inhame, no meio abríamos dois encaixes com o canivete, furávamos ambos com a ponta de um garfo surrupiado da cozinha da vovó. Quantos garfos nós empenamos um dente para improvisar um furador!

Depois, passávamos um eixo também de bambu e estava pronto o rotor, a roda. Duas pedras no jeito ou mais dois outros pedaços de bambus mais grossos serviam de suporte, de esteio. Na ponta de cada um, um bisel feito com canivete proporcionava uma boca de lobo perfeita para o eixinho do rotor girar. Calçava daqui e dali, enfiava na terra quando existia, escorava com pedras. Encostavam-se as pontas da cruzeta na água deslizante do bicame e pronto! Lá estava mais um moinho girando e jogando para cima gotículas de água que, de acordo com a incidência dos raios solares, mais pareciam gotas do mais puro diamante a flutuar. Era um momento de glória para aquela agüinha mixa do Corguinho. Vaidade efêmera! Logo, logo, depois de subir alguns centímetros, fazia uma curva em descida, retornava, misturava-se à corrente e voltava a ser plebeia outra vez. E caminhava saracoteando ribeiro abaixo e sem parar.

Não era comum, até que bastante raro, mas de vez em quando um pequeno beija-flor aparecia por lá e, nos dias quentes de verão, pairava voando e deixava os respingos da água cair sobre si. O bater rápido das asas aspergia mais ainda as gotas brilhantes, incontáveis e outras se formando, como uma poeira maravilhosa de pequenas jóias esvoaçantes.

Mas o tempo passou. Crescemos. Sair para estudar. Guilherme ainda ficou um tempo mais longo, mas depois também se desgarrou, foi morar numa cidade próxima. Voltávamos nas férias, mas as brincadeiras já eram outras.

No colégio aprendi muita coisa, tenho aprendido ainda até hoje e ainda vou aprender muito mais, queira Deus. Mas uma eu não quero esquecer. Aprendi que Einstein havia descoberto, graças aos seus maravilhosos cálculos matemáticos, que o tempo não é exatamente o que pensamos. De acordo com a Teoria da Relatividade o tempo pode parar ou até nem existir. Tudo é muito relativo.

É isso! É isso! Eu sabia! Aquele tempo não passou. Ele continua vivo. Ainda está lá, apesar do meio século ou mais. Eu me sinto lá, junto de Guilherme, calça curta rasgada em algum lugar, com certeza; canivete no bolso, pés descalços, tronco magro, magrelo e descamisado, encostado no pé do coité ou sentado à sombra do jamelão, comendo manga verde com sal, rindo, alegre, feliz, feliz e feliz! Que se dane o mundo!

O beija-flor continua lá, muito deles, milhões deles! As gotas d’água que as suas asas lançam ao ar mais parecem um festival de fogos de lágrimas, jóias raras esvoaçantes... Não sei se é isso... Não encontro palavras... Qualquer coisa muito, muito bonita. Beleza, só beleza! Nunca a patativa cantou tão belos os seus cantos! Ela agora não se preocupa mais com o próximo verão. Também é eterna. Nunca eu vi tão bonitos os pés do embiruçu, sem uma folha e cheios de flores brancas, deixando no ambiente um perfume que eu nunca percebera antes. Os moinhos... Montão deles girando, às vezes, meio cambetas, girando, girando... Todos!

Eu estou ali. Guilherme está ali. Tudo está ali! O tempo não passou. Passou que nada! Não vai passar nunca! Não vai mesmo!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 01/04/2009
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