“Todo mundo é uma ilha”

Deitado com os olhos abertos lembrava um cadáver recém morto por alguma doença ou algo do tipo. Era um salão antigo onde o grupo de dança ensaiava seus passos, o local estava fechado dês de tempos atrás, digamos que entre dois ou três anos. Havia ainda as pichações que faziam os drogados que habitavam o local. Algumas feitas em caneta piloto outras com tinta e spray eram marcas que alguém um dia passou por aquele lugar e provavelmente este alguém não voltara. A luz pálida do sol entrava timidamente, havia um pouco de névoa no ar pois a noite passada fora de chuva intensa. O tempo estava parado, não havia moscas, não havia barulhos, não havia vozes. Aquele local cheirava a mofo, o assoalho era de madeira e há tempos começara sua degradação, o ambiente tinha o ar de madeira velha e molhada. Quando chovia a água caia tanto dentro quanto fora, goteiras por todo o telhado acelerava o estado de degradação daquele inóspito lugar.

Aquele lugar era seu refúgio, um esconderijo onde ninguém poderia encontrar-lo, um lugar onde Deus não o via, um lugar onde nada poderia importunar-lo. Seus problemas eram um mapa para esta rota de fuga. Usara drogas pesadas no passado, bebera e caira como um pobre diabo nas calçadas da vida, fora ridículo sempre que precisava ser ridículo e tal coisa se tornara um vício. Ser ridículo, falar besteira, cair pelos cantos o tornara popular. Dizem que a popularidade é o que faz o homem pular do mais alto precipício para manter tal ilusão. Agora olhava para as janelas onde a tímida luz do sol entrava. Como poderia aquecer aquela luz, seria algo tão divino? Nunca tivera um sonho, de onde ele vinha os sonhos eram meros devaneios, de onde vinha só podia-se sonhar dormindo e quem dormia para sonhar terminava morto, num buraco negro que sugava todos os simples sorrisos. Decepcionara-se com todos e tudo, criara seu mapa de fuga baseado na decepção que o mundo todo lhe proporcionara, seria ele o salvador da pátria ou apenas mais um que grita e termina rouco?

Sua infância fora a de qualquer outro, sem propósito qualquer a não ser fingir que não entendia do que o mundo era feito. Suas brincadeiras eram tolas, fingia ser um herói poderoso e que lutava contra a injustiça, voava pela cidade em luta contra o crime ajudando todos que precisavam de sua atenção. Em sua ilusão tal herói era morto pela mão que ele ajudou. Em sua infância imaginava-se voando pela cidade, na adolescência imaginava-se caindo

“Todo mundo é uma ilha” foi o que escreveu quando foi para aquele salão de dança pela primeira vez, seus amigos riram dele pois não entenderam o que queria dizer. Ele olhava com seus olhos cadavéricos aquela juventude riscada do qual vivia, a era das drogas, da depressão, da perdição, da competição. Ele sabia que não possuía amigos, ele sabia que por mais que cresça tem coisas que nunca irá entender e aquilo que vivia era uma das coisas.

Passara pelas drogas e se distanciara da mesma, seus amigos distanciaram dele por ser diferente, agora não fazia mais parte da “tribo da viagem” agora ele era o “sem-tribo”, o menino sozinho, o diferente. Não se adequara ao meio e o meio o excluira. Quando freqüentou os tempos colegiais era notável que sua tarefa de casa era uma lição bélica de como acabar com a concorrência vestibuliva, sua meta era procurar e destruir e tudo o que ele acreditava dependia daquilo. Não possuía sonhos então tudo era sem sentido perdido no vazio e no nada.

Se via no futuro, de terno e gravata, de óculos esporte no seu carro do ano, se via bancário ganhando um bom salário, com esposa e dois filhos, com um apartamento em uma parte nobre da cidade. Nascera na burguesia e provavelmente morrerá um eterno burguês. Seus filhos estudarão nas melhores escolas, o rapazinho será o que trás problemas e a menina será a prodígio. Sua mulher o – olharia com reprovação toda vez que falava algo inútil ou errôneo. Seria obrigado a ir às festas da empresa e seria hipócrita sempre que perguntassem algo a ele. Sem sonhos, sem futuro, sem passado, estacionado no presente vivendo a eterna rotina. Morreria aos 86, enfarte.

Aquele futuro não era o dele, não sobreviveria daquele jeito. Levanta, limpa a poeira, olha pela janela, o dia está lindo. O céu azul está limpo e o sol já bate naquelas janelas com intensidade. Seu espírito inquebrável esparramava pelo assoalho podre. Seus fantasmas não o assombravam, superara tudo aquilo, as drogas, a bebida, os amigos. Hoje como um homem solitário e sem sonhos teimava em viver no meio de uma perdida sociedade, afogado nas ilusões que fora obrigado a engolir. Vivia em uma sociedade adolescente perdida, vivia em uma sociedade adulta perdida, uma geração ferida sem ponto de chegada. Suas ilusões não eram sonhos, meros devaneios tolos não se configuram como sonhos. Fechara a porta atrás de si, sem trinco qualquer outro poderia visitar o lugar desativado dos seus pensamentos, qualquer um que entrasse naquele antigo ponto iria se deparar com o escrito na parede: “Todo mundo é uma ilha”