NA FORJA

Já de longe o vovô avistou Mané Gambá descendo apressado pela estrada que o trazia do canavial. Como sempre acontecia, o velho Badini nem esperou a sua chegada e rápido iniciou a subida, indo ao seu encontro. Alguma merda havia acontecido, pois não estava prevista a sua volta para aquelas horas.

-Mangangá de novo, Mané? Gritou meu avô de longe.

Não. Não eram as mamangabas. Em outra oportunidade elas haviam dado o maior couro nele quando teimou em destruir um ninho daquelas vespas, pisoteando-o. Conseguiu o que queria, mas ficou uns bons dias acamado e com febre pelas ferroadas que levou por todo o corpo. Mané Gambá disse-lhe que uma das correntes que ligava uma junta de bois a outra arrebentara e precisava ser consertada.

Sem todas as juntas atreladas não poderiam trazer o carro lotado de cana. Se tinha subida ou mesmo na várzea, poucas naquela região, todos os bois puxavam o carro para frente. Naturalmente a junta dos de coice servia mais para sustentar o cabeçalho do carro e pouca força fazia.

Nas descidas, a amarra era necessária. Levavam as três juntas para a parte traseira do carro e engatava o gancho da corrente numa argola presa no prolongamento do cabeçalho. Os dois bois de coice iniciavam a descida e os demais, incitados pelo candeeiro, seguravam o carro, fazendo força contra a sua descida. Um tipo de freio meio besta, possivelmente oriundo de além-mar, mas funcionava.

Vovô deu meia-volta e lá de cima já gritou para acender a forja. Ele teria de caldear aquela peça, já que não existia solda elétrica ou similar, somente a branca para fechar furos em latas de leite, bacias, sejam, utensílios que não precisavam ir ao fogo e nem precisavam de tanta resistência.

Apanhei brasa no fogão, joguei carvão e mandei ver na manivela da ventoinha. Meu avô não usava o fole. Era rápido. Logo depois o fogo estava tinindo; vovô colocou a peça lá dentro do carvão agora em brasa e enquanto aquilo esquentava, ele foi até o córrego buscar um pouco de areia bem fina e seca. Não faltava por ali. E eu dando duro na manivela. Se cansasse um bracinho magro, passava a rodar com o outro. Parar, nem no pensamento.

A caldeação visa juntar por definitivo dois pedaços de ferro, de maneira que eles se comportem como um só. Hoje é como soldar uma peça a outra, muito mais fácil e eficiente, sem dúvida.

Primeiro ele preparava as duas extremidades. Amassava-se daqui e dali, dava a forma desejada e colocava uma sobre a outra, tocando de leve. Depois, aquecia o conjunto quase no ponto de derreter, de fusão. O ferro fica quase branco de tão quente. Como saber o tempo certo? Questão de feeling, ô mané! Não dá para ensinar. Somente marretando ferro quente muito tempo sobre uma bigorna. Um dos currículos obrigatórios da Universidade da Vida.

Mergulhava-o naquela areia e tome marretada em cima. Neste momento ele me prevenia para esconder atrás da prensa de fazer fardos de algodão porque voavam muitas fagulhas que me queimavam, assim como ele também ficava todo furado na pele e na roupa. Para quem enfrentou não sei quantas mamangabas, aquilo era pinto.

Trabalho pronto, jogava a peça num canto para esfriar. Acho, não me lembro bem, mas, acho que não se podia colocar água para ajudar no esfriamento, mas ele, impaciente, jogava terra seca em cima, chutava prum lado e pro outro, abanava, mas quieto esperando, ele não ficava.

Ele era muito bom numa forja. Dava gosto vê-lo fabricando um facão, dando um jeito num ferro de plaina que não mais sustentava corte, fazendo um formão, talhadeira ou caldeando alguma coisa. Enquanto parava por momentos de bater no ferro quente e observar o trabalho, repenicava a marreta sobre a bigorna nua como se estivesse marcando o compasso cadenciado de uma melodia. Ele era mesmo o grande maestro daquela obra prestes a nascer.

Não só fazia essas coisinhas pequenas, mas eu babava observando-o criar uma chapa para rodeiro de carro de bois; fabricar até as tenazes e depois colocar aquilo tudo no terreiro, cobrir com lenha, acender o fogo e na temperatura certa, chapear aquela roda de madeira. Nem precisava cravar. Não saía dali nunca mais.

Então jogavam água para esfriar; disto eu me lembro bem. Era uma animação, porque todos os ajudantes tinham de trabalhar em sincronismo e ele ali gritando, animando, coordenando. Vejo-o ainda lá, correndo, pulando de um lado para outro, falando sem parar e se machucando sempre. Numa tarefa dessas, invariavelmente ele se queimava ou feria de outra forma alguma parte do corpo. Apostar e ganhar!

- Bota querosene aqui!

Mal parava nem para eu molhar a lesão com um pouco de querosene da lamparina, sempre à mão quando vovô trabalhava na forja. Quantas vezes tinha de ir trotando atrás dele com seu braço estendido e eu tentando acertar o local ferido. Não podia parar; ele era impossível. Ele foi impossível!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 09/04/2009
Reeditado em 03/05/2009
Código do texto: T1531045