POR CAUSA DE UM CHICLETE

Parecia um dia como outro qualquer até aquele chiclete grudar na minha calça. Estava no intervalo faltava pouco tempo para eu sair da escola e um chiclete que certamente um aluno resolveu colocar no lugar onde os professores sentam e descansam no intervalo das aulas. Como qualquer mortal quis xingar e praguejar o anônimo que fez aquilo, mas não sou uma simples mortal.

Tinha que voltar para sala de aula e logo ouvi a voz ensurdecedora de uma aluna: “Professora sua calça está suja aí trás, tem chiclete grudado!!!”, “Eu já vi, eu já vi.”, respondi sem muita graça. A essa altura já tinha aparecido mil e uma sugestões de como eu tirar o chiclete da minha calça e resolvi aceitar a sugestão do gelo.

Deixei os alunos na sala quebrando a cabeça com um exercício, fui à cozinha, peguei gelo e me dirigi até o banheiro. Seria eficiente se o chiclete não estivesse tão espalhado. A sensação que tive foi que colocaram o chiclete na cadeira esmagando e espalhando bem para que quando alguém sentasse não ficasse concentrado só num lugar mas que se espalhasse bem pela roupa. Foi exatamente o que aconteceu.Pacientemente usei o gelo, o cheiro daquela borracha mascada me enjoava, ainda bem que pelo menos para aliviar o calor o gelo estava servindo. Enquanto isso só me vinha a mente uma coisa: Um poema de João Cabral de Melo Neto:” Para mascar com chiclets”. Não recordava muito bem das palavras do poema mas o título eu sabia perfeitamente que era aquele. Meus primeiros contatos com João Cabral não foram muito amistosos e hoje eu entendo que era porque surgiria entre os textos dele e eu uma grande história de amor, amo os textos de João com a mesma intensidade da dificuldade que tenho para os entender, e o que eu lembrara naquele momento era um deles.

Enquanto pensava no poema eu tinha que mascar amargamente na minha calça aquele chiclete. Aquele chiclete que parecia não se acabar, a sensação que eu tinha era que só se espalhava cada vez mais. Desisti de lutar com ele e voltei à sala, faltava pouco para eu ir embora. Tantas coisas para fazer e eu ainda teria que voltar para casa e vestir outra roupa. Ao chegar em casa fui correndo procurar o poema que queria e achei. Marquei a página, tomei um banho, vesti a roupa, agarrei o livro comigo e saí. No ônibus aproveitei para ler e reler, brigar e fazer as pazes com o texto. “Quem subiu no novelo do chiclets, ao fim do fio ou do desgastamento, sem poder não sacudir fora, antes, a borracha infensa e imune ao tempo;”, fiz dessa afirmação no poema uma pergunta, para mim todo poema era uma pergunta, mas ele não tem nenhuma interrogação. A essa altura já estava mascando aquele poema “sem poder não sacudi fora”, e nesse mascar, só interrogações. Tempo? Chiclets? Chiclets e tempo? Eu e o tempo, eu e o “tempo chiclets”. Que grude! Mais um poema a mexer comigo. Não sei me desligar dos textos e qualquer acontecimento banal é só mais um motivo para eu escrever.

Não quero interpretar o texto de João Cabral. Só quero assumir que as palavras já estão grudadas em mim e elas, eu sem bem, são imunes ao tempo. O chiclete é muito resistente ao tempo, pode levar décadas para se decompor, já as palavras não. Elas não se decompõem, são imortais. Além de imortais mais teimosas que eu.

Fico contente imaginando que ainda vão aparecer muitos chicletes para grudadar na minha calça.

Silvia Pina
Enviado por Silvia Pina em 11/04/2009
Código do texto: T1534017
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