UM RAIO CAI NA MESMA CABEÇA DUAS VEZES

Tem coisas que acontecem que fica difícil o leitor acreditar no que se escreve. Mas, com toda a sinceridade do mundo, isso também ocorreu. De verdade. Sem tirar nem pôr.

É sabido que eu comentei, aqui, durante várias semanas, sobre uma viagem que fiz, na companhia de um colega professor, à capital do Estado. Nessas crônicas eu falei das manias, das esquisitices, dos vícios e, até das doenças que, nós, seres humanos vamos acumulando ao longo da vida.

Pois bem. Semana passada eu estava de saída para o centro da cidade quando a digníssima me pediu para eu comprar dois remédios para ela: um para a pressão e, o outro, uma pomada cicatrizante.

Como tinha que dar uma passada numa agência bancária local, procurei estacionar o mais perto possível dos dois locais (sabe como é: sol quente, ruas lotadas de gente indo e vindo, as calçadas obstruídas por tudo quanto é bugiganga – por camelôs e donos de lojas que, além de utilizarem seus espaços internos, ainda se acham no direito de colocarem os seus produtos nas calçadas, concorrendo diretamente com os ambulantes -; carros disputando o mesmo espaço que os pedestres...) e entrei, por acaso, numa farmácia que não era a que eu costumo frequentar para compra de medicamentos (Alto lá! Não sou adepto das capsulazinhas coloridas, dos comprimidinhos multicores, das pastilhazinhas redondinhas que se parecem com aqueles saborosos dropes de morangos – entro e compro apenas porque faço um favor à minha querida sogra com seus medicamentos mensais).

Pois bem. Entrei na farmácia. Estava lotada. Tirei do meu bolso o papel, onde estavam escritos os nomes dos dois remédios que queria, e o li para a vendedora.

Ao meu lado, um jovem rapaz atlético, bem vestido, de óculos escuros no rosto, aparentemente, uma pessoa comum, saudável, de cotidiano simples, como todos ali.

- Esta pomada é muito boa, disse ele. É tiro e queda. Cicatriza na hora!

Olhei-o, de soslaio, e acenei com a cabeça, concordando, apenas como uma demonstração de educação.

- Inclusive, continuou ele, eu sofri uma cirurgia nos testículos, há cerca de dois meses, e tive um problema de quebra de pontos. Se não fosse essa pomada, eu tinha voltado para a mesa de cirurgia para ser ponteado novamente. Colou mesmo, disse num tom entre eufórico e vibrante.

- Testículos? – Interroguei.

- Hidrocele testicular, arrematou. É o acumulo de fluido límpido dentro da membrana que contém o testículo. Ficou enorme. Não podia nem andar.

Passei a olhar com mais atenção para o rapaz. Depois da experiência com o caro colega de profissão, eu achei que o raio não cairia na mesma cabeça duas vezes. Porém, ele nem me deu tempo para formar um diagnóstico preciso sobre sua pessoa.

- Mas, nem doía. Se não fosse pelo inchaço... Agora (nesse momento ele ficou mais perto de mim. Instintivamente, como fiz nas vezes anteriores, já me postei em posição de defesa), o que doía, de verdade, era o cisto que cresceu dentro dele. Esse sim, doía demais! – Completou.

Para não parecer que estava começando a ficar com medo do papo, eu disse que nunca havia ouvido falar em hidrocele, mas sim, em varicocele.

- Já fui operado também, falou com uma ponta de orgulho. Duas incisões – uma de cada lado, disse ele, apontando para as duas laterais de sua cintura. No entanto, deu problema depois e, foi daí que veio a hidrocele.

Nesse momento, a balconista chegou com os dois medicamentos. Quando ele viu o remédio para a pressão, disse:

- Tomo um pela manhã, outro à noite.

Não me aguentei. Dei uma risada. E olha que eu não costumo rir com educação. É gargalhada mesmo. Depois, com medo de uma reação, pedi desculpas.

- Não se preocupe. Quando eu falo essas coisas a maioria das pessoas ri. Também não é pra menos. Veja, eu nem posso ficar em pé muito tempo. Sabe por quê?

Nem deu tempo perguntar. A resposta já veio antes que eu pudesse abrir a boca.

- Tenho um problema de circulação na perna direita e, na esquerda, a patela que faz a articulação do joelho se deslocou – com os exercícios de musculação – e agora estou com osteoartrose femuropatelar.

Depois dessa, não tive dúvidas: raio cai na mesma cabeça, sim! Para provocar, perguntei:

- Rapaz, só falta você me dizer que sofre de ansiedade...

- Tomava três comprimidos por dia para controlá-la. Hoje, graças à terapia, só tomo um, contou.

Não!? Mas... E Síndrome de pânico? – Cutuquei.

- Não saio à noite de forma alguma! Vivo sedado. Está vendo eu de óculos escuros? (Claro que estava vendo. Aliás, todo mundo dentro da loja, nessa hora, estava vendo e, também, ouvindo a nossa conversa, assim como, as minhas risadas homéricas). É uma proteção que encontrei para poder andar no meio das pessoas. Assim, de óculos escuros, penso que é um escudo, concluiu.

Rapaz, disse eu, você é uma figura, sabia? Mas, me diga: tem mais alguma outra doença?

- Um problema renal. Mas não é nada sério. A medicação que estou tomando está fazendo efeito.

Mais alguma? – Perguntei (A minha vez de passar no caixa tinha chegado e eu não queria continuar a conversa fora daquele ambiente. De forma alguma!).

Ele olhou para mim, pensou um pouco, e disse:

- Tenho insônia. Muita. Só para você ter uma idéia, já faz três dias que mal prego os olhos. E olha que não é falta de tomar comprimidos contra ela.

Finalmente fui liberado. Recebi os medicamentos, olhei para o jovem, despedi-me dele, desejando-lhe boa sorte e, quando estava saindo, ele ainda disse:

- Foi um prazer conversar com você! Olha, eu sou normal, viu?!



 

obs. Imagem da internet

Raimundo Antonio de Souza Lopes
Enviado por Raimundo Antonio de Souza Lopes em 19/04/2009
Reeditado em 05/12/2011
Código do texto: T1547546
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