UM PREGO

Eu e um companheiro também amante da marcenaria estávamos trabalhando na oficina que ainda tenho ociosa lá no Parimá. Ele não era vidrado em peças miúdas e com algumas características de acabamento e a minha última mania foi a marchetaria. Gostava de fazê-la com madeira maciça, apesar de que hoje a preferência seja para o recobrimento com lâminas.

Nunca cortei uma árvore para esperar seu cerne secar e o aproveitar nas minhas sessões antiestresse. Todas as peças feitas foram com madeiras secas, procedentes de árvores mortas há muito tempo. Não só como consciente ecologista, mas também porque tecnicamente não se deve fazer uma peça de marchetaria com madeira ainda úmida.

Tão caxias sou que alguns túneis produzidos por uma larva jazem incluídos no meu trabalho como um selo respeitoso a vida daquelas plantas. Vivem e morrem como a gente. Tão bom se todos ou a maioria de nós entendesse isto. Dependemos muito mais delas do que o contrário. Viverão melhor quando não mais estivermos por aqui.

Cal, meu irmão, disse-me ter no seu sítio um tronco seco há anos, cujo cerne era bem amarelo e poderia ir lá cortá-lo. Fui logo. Foi uma jaqueira não muito grossa, mas me servia. Levei-a para a carpintaria e retiramos dali tábuas finas aproveitadas nos próximos trabalhos.

Utilizando uma serra circular grande e motor potente, fomos desempenhando a tarefa programada. Numa dessas passagens, quando a tábua se desgarrou do tronco verificamos com muita surpresa haver um prego em bom estado de conservação encravado no cerne da madeira. A serra passou rente e nem percebemos. Interpretação do meu companheiro:

- Que serra danada! Boa pra burro! Cortou este prego e nós nem percebemos!

Verdade. Nós nem percebemos mas ele também não atinou que aquela era uma serra com pontas de vídia e até capaz de cortar ferro doce. Não dei maior atenção àquilo. Como a genética fala mais alto, conservo ainda as mesmices do meu avô. Quando quero fazer alguma coisa, tem que ser pra já.

À noite, sem motivo aparente, demorei pra dormir. Lembrei-me do prego, mas não o vi tal como meu companheiro. As imagens foram as mesmas, mas na minha cabeça buliram em outros arquivos até então sossegados. De cara surgiram-me perguntas, felizmente, até hoje sem respostas:

- Quem colocou aquele prego ali? Quando foi? Para quê?

Às duas últimas podem-se até fazer avaliações sujeitas a enganos, mas a primeira... e era aquela a que mais me excitava.

Assumi como verdade: aquele prego fora ali martelado até a metade por um menino como fui para pendurar gaiolas. A árvore engrossou e o engoliu. Se aquelas ao redor da sede da fazenda do vovô ainda lá estivessem, tenho certeza de que haveria na sua intimidade muitos pregos escondidos como aquele para contarem a minha e outras histórias. À medida que a árvore crescia ou tragava o primeiro prego, outro era colocado mais abaixo. O único que sempre ficou por anos no mesmo lugar foi o do esteio do paiol de milho fincado defronte a uma heroica remanescente árvore da Mata Atlântica.

Não dormi durante horas. Retornei à minha infância. Esbocei sorrisos. Chorei. Derramei lágrimas adultas nada sofridas somente por me lembrar da minha meninice, igualmente sem reclamos; bem vivida. Não foi choro de culpa ou arrependimento. Aquilo tudo guardado na minha memória, àquela noite buscado de volta e agora não mais apreciado por mim; foi de uma época, foi do passado que teimo em não gostar, pois choca muito com o presente e me torna incapaz de fazer os dois se darem às mãos ou, ao menos, tapinhas nas costas.

Eu colocava as minhas gaiolas com o “chama” no esteio do paiol com um ou dois alçapões. Na árvore castanheira, existente junto ao caminho do carro de bois, colocava outra e logo abaixo, numa grande e velha paineira, mais uma. Ia para o colégio...

Na volta, ainda longe, me encarnava uma ansiedade benéfica. Possessão provocando tremuras só de pensar que em todos os alçapões estivessem com um canarinho, avinhado ou outra avezinha qualquer.

Quando os via, agitava-me todo, arrepiava e o coração galopava se um deles estivesse com a sua portinha fechada. Sinal quase inequívoco de algum canário apavorado lá dentro me esperando para ser recolhido. Segurava-o pelas perninhas e acariciava o “sobre”. Se trinasse forte seria um belo e corajoso chama; se chilreasse ou poucos trinados, não valia a pena pois quase certo era uma fêmea ou macho frouxo.

Ah! Gente! Nenhum de vocês pode avaliar o que senti quando vi aquele prego. Imaginei quantas alegrias o menino da fazenda, o menino escravo ou, como acredito, juntos se deliciaram com uma gaiolinha de embaúba ou bambu “muxiba” dependurada ali e eles ao longe excitados.

Quando aquele canarinho, o amarelinho, cantador, pau puro numa briga chegou à porta do alçapão fez pressentir o que aconteceria. Não resistiu à canjiquinha ali à sua disposição, pulou e a portinha abaixou com o peso de um caco de telha atado com embira.

Voltarei lá no sítio procurar aquele pedaço de madeira. Vou fazer dele algum objeto, um trem qualquer ou nada mesmo, somente o preguinho escondido na intimidade do tronco. Quero pendurar num lugar onde serei sempre obrigado a vê-lo. Em frente ao micro! Taí!

Garanto: Meu coração vai esbaldar-se todas às vezes que o olhar. Pô! Um simples prego? Pois é! Quanta história pode ser contada ou brindar o retorno de alguém à infância esquecida e lembrá-lo de que também já pregou um para pendurar uma gaiolinha mixa. Olhos marejados... Difícil de segurar!

Sábado, 8 de março de 2008

Dbadini
Enviado por Dbadini em 28/04/2009
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