TAPERA: MORADA DOS MEUS MEDOS

Continua lá fazendo parte das terras que antigamente foram do meu avô. O Córrego dos Índios, o Lajeado, a estrada, a matinha rala, pedras, furnas... Colocados assim como pedaços ou recortes de um cenário sobre a mesa não dizem da beleza do lugar, mas agrupadas as peças, só veremos poesia e paz na alma.

O Córrego dos Índios passa por ali aprontando coisas que normalmente não faz: pula pedras, forma cachoeiras e dá cambalhotas como criança sapeca, esconde por dentro das grutas das grandes pedras presas pelas raízes centenárias e egoísticas da figueira imensa. Depois dessa farra toda, amadurece, toma juízo, abraça o Lajeado, seu principal afluente e segue manso.

O Lajeado é formado por três ou mais filetes d’água que brotam nas serras da Don’Anna, do Arria Saco e do S. Bento. Ajuntam-se na fazenda da Serra, formando um pequeno poço e abraçando uma grande pedra arredondada onde eu, Tipedro, compadre Otávio e Alexandre combinávamos o encontro para comer a matula, bater um papinho e saber das vantagens ou esfregas dos companheiros naquele turno das muitas caçadas nas épocas das férias.

Cedo, ainda escuro, saíamos de casa e nos juntávamos ao Tipedro no trajeto. Além da farofa e da garrafa de café, meu tio nunca deixava de levar junto ao farnel uma garrafinha de cachaça da boa que ele e o compadre Otávio muito apreciavam. Tipedro já esqueceu a sua espingarda em casa, mas duvido que tenha esquecido alguma vez a branquinha.

E ali, à sombra do que restou da antiga mata, comíamos o farnel e, nunca me esqueço, pegávamos às margens do córrego agrião verdinho e de folhas parrudas naturalmente nascido ali – nativo - como dizia o Tipedro com a sua entonação de voz característica. Água era servida do próprio poço com a ajuda de uma folha de inhame brabo, presa pelas bordas em forma de uma concha.

O Lajeado desce algumas quedas ou desviando-se das pedras pelo caminho e depois entra na mansidão dos meandros nas pequenas várzeas de aluvião, trabalho seu em pacientes anos e anos. Nas terras da dona Zizinha ele despenca do alto e se tivesse mais volume seria gostoso de ver e ouvir. Logo após escorre por um lajedo em declive, contorce por fendas, saltinhos daqui e dali, deixando na sua passagem a pedra lisa e cheiinha de ondulações numa das suas teimosas tarefas de mudar as coisas ao seu redor.

Até meu pensamento ele consegue vacilar. Sento na pedra lisa e aquecida pelo sol. Deixo a alma sair, vagar. Flutuo em transe e delírio. Ventinho fresco na face. Coisas inimagináveis acontecem: um surdo fazendo a marcação; o bater inconfundível e arrepiante de um repenique; matraquear incessante dos tamborins alucinados; a cuíca, os chocalhos; a plateia delirante perfilada e encarnada nos fiapos de arbustos das margens e as folhas mortas arrancadas pelo redemoinho do saci sobem e caem como serpentinas ou confetes. Na poça maior giros e giros, bolhas... Respingos coloridos penetram no ar, pedacinhos de arco-íris múltiplos... A espuma rodando incansável me faz projetar baianas e suas vestes embrutecidas e graciosamente rendadas. Terminado o desfile alucinante, invade a parte plana e larga do leito e passa quieto, estafado sob o arco dos pilares da ponte e se dispersa na corrente maior do Córrego dos Índios.

Estão lá, belas como sempre foram, a estrada Tronco-Norte correndo paralela ao córrego; a ponte sobre o Lajeado, a moita de bambu-açu, a figueira, as pedras, as furnas, a matinha rala das raízes à mostra e lambidas pelo Lajeado; a estrada que vem da serra...

Ninguém nunca morou ali. A Tapera é mal-assombrada. Gente só de passagem, entregando o leite para o caminhão ou para viajar no ônibus. Ninguém se aventurava ainda mais se anoitecia.

Quando menino os meus medos moravam ali, desconfio. Lá nunca pesquei à noite, mesmo sabedor que havia muitos cascudos e bagres enfurnados naquelas locas de pedras e que saiam para se alimentar após o por do sol. A ponte era palco para arrepiantes exibições de fantasmas desocupados sobre o corrimão de cimento frio, agitando e fazendo tilintar suas pesadas correntes, gelando o sangue de gente aventureira e corajosa. Zumbis e mais zumbis por ali desfilavam suas magrezas e seus olhares de morto-vivos e tantos eram os esquifes expostos que cavaleiro nenhum, por mais que esporeasse o animal, fazia-o prosseguir.

Continua lá vigorosa, bela e imutável aquela encantadora paisagem que eu sabia até admirar durante o dia, mas nem de longe queria pensar nela à noite. Pavor. Insônia. Suores. Não me importunam mais o canto apavorante do corujão, do bacurau ameaçador, do urutau fedorento ou da rasga-mortalha treinando seu voo rasante em cruz para marcar, sem erro, a casa de quem morreria em breve.

Meus temores foram desvanecendo lentamente. Não me importam mais os zumbis, almas penadas, mula-sem-cabeça e tudo o mais. Pode ser que todos ainda estejam lá para alguém. Não me fazem mais nenhum mal. Não mais me apavoram. Não mais me amedrontam. Tenho até certo carinho por eles: fizeram de alguma forma parte de um pedacinho da minha vida que já se foi.

A Tapera continua a mesma. Eu mudei! Que importa? Que ela seja eterna.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 03/05/2009
Reeditado em 21/05/2009
Código do texto: T1573963