MÃE ZIZICA

Se capeta tivesse parentes o Guilherme seria primo em primeiro grau. E isto porque eu não acredito que capeta tenha tido filhos. Nunca vi ninguém tão encapetado, briguento, carne de pescoço com escalação sempre garantida no primeiro time. Só não era burro, coisa que eu também duvido que o capeta fosse. Não ficou no colégio nunca um ano corrido. No primeiro ou no máximo no segundo mês de aulas ele já tinha castigos suficientes para encher a agenda pro resto do período. Zerava aquele ano e no seguinte... Pior ainda! Resultado: expulso! Já era rotina: Guilherme matriculado, Guilherme expulsado. Ano após ano!

Morava com a avó Zizica (a quem ele chamava de mãe Zizica), a mãe Carolina um irmão mais velho, mão-de-vaca assumido e a irmã caçula. Ele e Zizica viviam às turras e duvido que a razão estivesse com ele nessas encrencas todas. Ela já era idosa, gorda, vestia-se com aquelas roupas compridas e cheias de anáguas, mais parecendo um saco de estopa cheio de algodão. Roliça.

Lá na fazenda tudo teria de ser produzido no local para manutenção da família. Plantava e vendia-se parte do que não se necessitava para comprar algumas não existentes, como sal, tecidos... desses gêneros.

Havia um grande pomar de mangueiras e de várias outras frutíferas, mas somente se aproveitavam comercialmente as goiabas, transformadas em goiabadas e vendidas. Aquelas que seriam comercializadas eram feitas em forminhas pequenas, semelhante a um tijolo. Mas também teria de deixar certa quantidade para consumo durante o ano e esta era colocada dentro de uma gaveta na mesa da sala de jantar, agora transformada numa grande forma forrada de papel celofane, trancada à chave guardada pela velha. Ela sabia a peste que existia ali e não dava mole para o safado.

Ponha sentido! (expressão que somente ouvi do meu ido Pai. Não há plágio porque Pai é sempre Pai) Guilherme descobriu um jeito de abrir a dita fechadura e teve uma ideia genial, coisa à-toa para um Ph.D em malandragens que nem ele. Quando a velha dava um pedaço para cada um, abria pouquinho a gaveta, tirava da parte da frente uma talisquinha de nada. Ele não. Puxava-a toda e cortava lá no fim o maior naco. Se ele continuasse retirando ali na frente, logo, logo a Zizica descobriria. Ele tinha consciência de que um dia eles iriam encontrar-se, mas nunca foi de antecipar nada. Deixe o dia chegar. Ficaria prevenido sempre de pé perto da porta da saída e no momento exato tomaria as providências. Raciocínio rápido era um dos seus fortes.

Quando isso ocorreu e a velha olhou para ele com aquele olhar de perigo nuclear iminente, já saiu queimando pneus, derrapando daqui e dali e a velha atrás. Mole de se livrar! É só trepar numa mangueira e esperar lá de cima a raiva dela passar. Mas a velha também tinha os seus recursos. Em malvadeza ela também não era nenhuma caloura; tinha seus diplominhas.

Pegou uma vara de bambu comprida e tascou a futucá-lo, pegasse onde pegasse. A coisa começou a ficar preta; pretíssima e ele teve de dançar bonito. Bambu raspando o lado direito, bunda pro lado esquerdo; bambu comendo solto por trás, bunda ágil para frente. Numa dessas manobras ele sentou os bagos num galho da mangueira e quase caiu desmaiado lá de cima.

A situação assim se afigurava: ficar ali ele estaria correndo o risco de ser empalado ou castrado pela vara da velha. Não tinha pretensão de castigar a Zizica, mas não teve outro recurso senão balançar forte um galho carregado de mangas e a coitada tomar a maior chuva de frutas já vista. Enquanto ela se protegia, desceu rápido e se mandou.

Agora teria de ajeitar a avó e por que não aproveitar a ocasião? O troco estaria a caminho. Disso ele não tinha a mínima dúvida. Sabia que ela adorava pescar e bolou. Guilherme era inigualável nas sacanagens. Disse-lhe, dias depois, que no poço em frente, aquele do capim-de-angola, havia uma enorme traíra pegando sol, dormindo que nem uma besta e ele só não deu um cacete caprichado nela porque teve a certeza de que a Mãe Zizica ia ficar muito alegre de pescá-la com o anzol.

- “Facim”, “facim” de pegar! Até com as mãos é capaz!

Ela ficou toda animada, alegre e até trocou algumas falas com ele. Aquele córrego dificilmente tinha traíras e ainda mais do tamanho como a mentira que o primo do Belzebu estava pregando. Ele, moleque esperto, já tinha até as minhocas tiradas da terra dentro de uma latinha de sardinhas com terrinha fresca por cima.

Sem titubear, ela pegou a trilha limpinha no meio do capim e dirigiu-se para a margem do córrego. Naturalmente a traíra não mais estava lá. Nem nunca esteve.

Enquanto tentava fisgar algum outro peixe o parente do bicho ruim pegou ramas do capim de um lado e do outro e as amarrou no meio da trilha. Fez uns três ou quatro obstáculos para a coitada da Zizica. Tudo pronto colocou em execução o seu plano.

- Corre Mãe Zizica! Pelo amor de Deus, corre muito! A Rainha tá vindo bufando!

Rainha era uma vaca zebu, chifruda e não perdia a oportunidade de correr atrás das pessoas. Ninguém é capaz de fazer ideia de como ele falou aquilo; da entonação; do desespero e do nervosismo que o parente do cão fingia estar. O descarado chegava sapatear no chão como se estivesse muito aflito! Encenação perfeita!

A velha sabia muito bem quem era a Rainha e nem pestanejou. Se mandou! Na primeira armadilha ela tropeçou um pouco, balançou para um lado e para o outro, deu umas derrapadas, mas conseguiu ir em frente: ficou na próxima deitada no areão de barriga para cima e olhos faiscando como nunca, babando de raiva.

Guilherme jurado! Mais um ciclo!

Dbadini
Enviado por Dbadini em 11/05/2009
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