SABIÁ-LARANJEIRA

Aquele sabiá, cantor das manhãzinhas, está de volta. Para mim tudo é cíclico. Os dias se tornando maiores, há maior tempo de iluminação solar e ele vai assanhando, procurando demarcar seu território, arranjar uma costelinha no jeito e procriar. Se estão a milhões e milhões de anos aqui é porque tudo isso que fazem deu certo, senão já teriam ido pra cucuia há muito tempo. A sua hipófise já está perfeitamente configurada para executar esta secular tarefa.

Acho que é o primeiro a acordar. Logo, logo arranja uma árvore e solta o canto. Curtinho, alguns compassos somente, repetitivos, mas agradáveis se a gente acorda sem mais vontade de dormir. Caso contrário é um saco ouvir, sonolento, a mesma musiquinha chinfrim todas as manhãs.

Voa para outra árvore, canta; procura mais uma, canta e assim vai demarcando a sua propriedade e, quem sabe? Cantando também alguma sabiá franguinha ainda e ávida para se meter numa louca aventura amorosa? Provavelmente depois disso ele vai procurar comida porque nem mesmo as pequenas aves são de ferro.

Aqui em casa ele é frequentador habitual da gamela que fica na garagem com bananas maduras e outras frutas. A bem da verdade, eu e ele. Somos tarados por bananas bem maduras e sabe quem é o melhor nessa tarefa de escolher? Acertou! Ele, o sabiá! Se você quer comer a melhor fruta apanhe aquela já bicada, pois essa está bem madura e doce. Não se meta a besta de contestar a experiência de alguns ões de anos. Retire o sobejo e mande pau no resto e depois me conte. Olhe em volta, rapaz! Aprenda a viver! Ou aproveite a vida e aprenda?

Não passo a perna nele, não. Retiro mais ou menos dois terços e deixo o resto. Facilito até, ele bica somente o miolo macio e não muito tempo mais tarde somente lá está o canudo da casca. No dia seguinte recomeço a procura na garagem, ou melhor, do que sobrou de uma pretensa e planejada garagem.

Quando fizemos a nossa casa decidimos deixar lá um espaço para quatro carros. Não que eu e a Isa precisássemos de tantos, mas serviria futuramente para os três filhos também. Aí inventaram de fazer uma sauna. Fizeram. Sobrou um espaço entre duas colunas que não estava combinando muito bem com o resto. Fecharam ali... Com uma churrasqueira que serve a contento para um restaurante de médio porte. Churrasqueira pede uma bancada, pia... Ah! Um bar, geladeira, mesa e bancos para seis pessoas, pelo menos. Fizeram! Até um fogão à lenha (desse apelidado de econômico, sabe qual?) e puseram lá. Eu nunca consegui fazer um churrasco como os outros fazem. Até feijoada aparece! Pode?

Segundo a minha esposa, a garagem não estava combinando com aquele ambiente. Gritei logo:

- A garagem fica!

Ficou.Mas tivemos de fazer uma meia parede fechando a visão direta da churrasqueira e de tijolos aparentes para combinar com os do barzinho. Não sei onde ela arranjou tantas pedras roliças para encher parte do piso e encostar tudo àquilo na dita parede. Enfiou uns galhos de árvores bem tortos, encheram-nos de bromélias, orquídeas e espetou um pedaço de bambu com uma lâmpada na ponta e quis que eu acreditasse ser a trapizonga uma luminária linda. Continua tudo lá e quando chega o fim do ano enche daquelas lampadinhas cretinas que ficam piscando sem parar, bota algodão para fingir neve e todas aquelas basbaquices que a gente está cansada de ver no Natal dos outros lá do hemisfério norte. (Pelo amor de Deus, não fale que você tem uma rena pra vender! Ela vai dar um jeito de comprar na hora).

Ah! Eu estava esquecendo! A garagem ficou reduzida quase pela metade e depois disso tudo ela ainda ganhou de presente aquela mesa feita de dois blocos enormes de granito esculpido à marreta e ponteiro de aço que pesa, por baixo, mais de uma tonelada. Eu tenho que contar a história daquela mesa! Ah! Tenho! (Aguenta as pontas aí, Laércio! O Boss do nosso jornal).

Certa noite eu chego do trabalho e noto alguma movimentação anormal. Fico sabendo que a Isa estava auxiliando uma jovem senhora a tomar banho. Eu, heim! É! Ela foi a Maternidade LBA e presenciou uma cena que a comoveu.

Uma jovem mãe chorando porque a neném teria de ser internada pra fazer uma transfusão total de sangue devido problemas de Rh, mas ela, a mãe, não poderia ficar por falta absoluta de lugar. A família era da roça, distante daqui uns bons duzentos quilômetros e necessitava estar perto da criança, pois somente ali seria possível aquele tratamento. Coisa pública, gente, funciona sim, quando lá existem pessoas que honram, dignificam sua profissão e têm vergonha na cara. Como na LBA.

Meteu a mulher no carro e trouxe aqui para casa. Levava de tempo em tempo para amamentar, dedicou-se quase que integralmente e assim a neném saiu-se bem e hoje deve ser uma mocinha. Como agradecer, pagar pela generosidade? E nem a Isa pensou ou queria isso. Fez porque gosta de fazer, de ajudar outros.

A família da criança lida com pedras, explorando granito e resolveu dar aquela mesa de presente para ela. Num domingo o sininho tocou no portão e vi da varanda que lá estava um caminhãozinho quase sentado, empinado devido ao peso. E onde se colocaria a mesa? Na garagem, óbvio! Ali é o lugar de botar tudo. Os carros estão tomando muito espaço. Carro, se quiser, que fique lá fora no sol ou na chuva, han!

Isa ficou agitada e adorou o presente. Tem mania de gostar dessas coisas pouco convencionais, saiu à rua e num átimo havia lá em casa mais de dez pessoas. Devido à prática do pessoal que veio junto, não foi difícil descarregar os dois blocos que compõem a mesa e localizá-los. E o que tem o sabiá com essa história toda?

A gamela cheia de frutas que eu me referi no início fica em cima daquela mesa de pedras lá na garagem e é ali que eu e o sabiá rotineiramente vamos procurar por bananas ou outras frutas bem maduras. Não se espantem! A garagem quase não é mais garagem e estou sabendo recentemente que o meu genoma está assim, ó, de genes de sabiá e talvez ou com bastante certeza nós sejamos parentes longínquos e por isto temos algumas preferências comuns.

Treco muito complicado esse negócio de genética, evolução... Não é mesmo?

>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>>

Nota: Esta crônica foi escrita há muitos anos atrás. Hoje a garagem ainda suporta uma mesa daquelas antigas de mais de três metros com dois bancos feitos por mim no sítio Parimá. Garagem restante para abrigar carro: somente uma vaga e meia, por enquanto. Mas a minha Isa manda e desmanda nas coisas daqui.

Ah! coloquei lá também o meu tonel para envelhecer a boa cachacinha. Mereço, não mereço?

Dbadini
Enviado por Dbadini em 12/05/2009
Código do texto: T1590440