O CASO DO OVO

Em Hamlet, Shakespeare disse: o sono é o prelúdio da morte. Não vou discordar porque isso não se faz aos poetas, que exprimem os mais recônditos sentidos da alma humana com a beleza mais bela que há na face da terra e alhures. Mas vou acrescentar um verso que, se de belo não tem nada, é de muita praticidade nos momentos difíceis e também não foi feito poesia, foi expressão da realidade mesmo e das duras. Ocorreu na república do Grajaú, bairro onde residia, o local atualmente é conhecido por Morro das Pedras. Muito tranqüilo então, comparado aos padrões de violência urbana que temos hoje. Custei a arranjar uma paródia para aquela casa de aventureiros em busca de uma vida melhor, como é praxe entre os jovens de todos os tempos saídos de famílias pouco ou nada abastadas. Como a vida sempre imita a arte, meu arremedo vai para o filme “onze homens e um segredo”, que no nosso caso passa a ser onze homens e pouca comida.

Tudo que se comprava às dúzias era democraticamente dividido entre os onze coabitantes com um bônus para aquele que chegasse mais cedo em casa. Era assim com as dúzias de ovos, bananas e outros alimentos que se vendiam nessas medidas e ao alcance dos recursos da caixinha de despesas que era rigorosamente controlada por um membro escolhido periodicamente entre os demais para tomar conta dessas e outras incumbências domésticas.

Muito se pergunta ou se divaga sobre as origens das coisas, dos atos, omissões e palavras e, sinceramente, creio que a solidariedade seja fruto de relações humanas com situações comuns, mas geralmente penosas, porque a vaidade e egoísmo humanos não abrem portas para a igualdade quando é para se dividir farturas. A carência é muito mais democratizada. Já a ira individual é derivada da ausência da solidariedade, mesmo quando o seu pretexto seja um ovo.

Dona Chica era nossa cozinheira diarista, porque tinha mais de um emprego e muitos filhos para alimentar, juntando parcos rendimentos de um de outro para dar conta do recado. Era ela a divisora dos alimentos extra-panela; melhor dizendo, fora do arroz com feijão. Nesse dia patético havia deixado para cada um o seu acompanhamento de almoço/jantar – dependendo do horário de cada um chegar em casa: um ovo. O Zé Lima, que saia logo cedo e retornava em noite já avançada, guardou o que lhe era destinado dentro de seu esconderijo e guarda roupas, que consistia em uma mala sob a cama, para ser cozido e deliciado como manjar antes do descanso para a batalha do dia seguinte. Após o rápido banho para não perder muito tempo e comer e dormir logo, ao som da antiga rádio Mundial AM, como fazia todos os dias, foi surpreendido com a falta do ovo em sua mala revirada. Incrédulo, chegou a duvidar que houvesse guardado ali e revirou toda a cozinha e o quarto na esperança de ter distraidamente deixado em outro local. Ledo engano, ele havia sido devorado, como fomos descobrir durante o seu acesso de fúria, que o levou às lágrimas menos pela fome e mais pela raiva da traição. Desconfiávamos do Caetano, que era quem mais tempo ficava em casa por causa dos horários alternados de escola técnica e pela fama de glutão. Mas como acusação sem prova é o refúgio dos destituídos de caráter, ficou a dúvida quase certa de que fora ele mesmo o autor do confisco.

O Zé, desconsolado e já quase resignado, deitou-se, não sem muito esbravejar e pronunciar xingamentos de teor impublicável, com um choro ressentido e raivoso. Dormia na cama superior do beliche no quarto que dividia comigo e com o Paulo, esse último, hóspede da cama de baixo, que na sua calma e resignada paciência filosófica proferiu, de baixo para cima:

- Ô Zé, durma que o sono alimenta.

josé cláudio Cacá
Enviado por josé cláudio Cacá em 15/05/2009
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