...E O TEMPO PASSOU!

Quando criança brinquei muito, mas muito mesmo com moinhos d’água feitos por mim e Guilherme lá no Corguinho. Não era nada difícil, bastava ter um canivete, coisa que qualquer roceiro que se prezasse nunca deixaria de ter. Canivete e, se criança, uma setra pendurada ao pescoço, geralmente fazendo companhia a um colar feito de barbante de farmácia e sustentando algumas medalhinhas de santos e crucifixos. Meu avô tinha um canivete Roger’s, de cabo preto, uma só lâmina, teteia, como deviam ser os canivetes de verdade, mas o meu e o do Guilherme eram de cabo de lata preta e enrugada, um Corneta roscofe. Mas cortavam pra danar!

Bambu tinha por ali mesmo. Da própria moita tirávamos umas cascas em forma de bica. Pedras e barro também não faltavam para fazer as represas. Pronto! Fácil, fácil! Nós tínhamos um monte deles, no feitio de uma cruz de ramo fino de bambu ou do talo da folha do inhame bravo, de porco, existente à beça por ali ao redor.

E eles ficavam lá girando sem parar até uma enchente levá-los ou a praga da porca com leitões - buscando a sobrevivência - fuçar aquilo tudo. Não tinha como evitar, mas até era bom, pois assim a gente tinha o que fazer e não ficava atirando pedras com as setras para cima dos passarinhos. Setra lá na nossa região era a mesma coisa que atiradeira, estilingue, feita com duas tiras de borracha de câmara-de-ar, um gancho de madeira, geralmente de “esperta” e um pedaço de couro onde se colocava a pedra. Artigo da maior procura e grande usura, pois quase não havia carros. Quando ganhávamos um pedaço de câmara tinha de ser poupado e uma coisa que nós não fazíamos de jeito nenhum era atirar pedras em garrincha, porque ela jogava praga e as borrachas arrebentavam à toa. A gente acreditava piamente nisso aí. Melhor para as garrinchas!

Bem, e depois que você cresceu e teve filho? Eu achei que ele também iria gostar muito de brincar com um moinho daqueles. Morando aqui na cidade, um pedacinho de nada de terra como quintal e sem um córrego, como é que eu iria fazer um moinho para ele ver rodar?

Arranjar um galhinho de bambu não era difícil, tem em qualquer lugar, mas e água? Botar para rodar na torneira é sacanagem, gastar água com brincadeiras, coisa cara e de utilidade muito grande para se desprezar assim. Bolei! Arranjo uma latinha de óleo de cozinha, faço um furinho com um prego fino em baixo, monto a cruz de bambus e aquele filete de água saindo a fará girar. Um litrinho somente! Não irá fazer muita falta, pensei. Qualquer girozinho mixa ele vai adorar. Nunca viu outro melhor. Elementar! Não vou gastar água quase nenhuma... Sei lá! E se ele gostar muito e ficar me enchendo o saco para brincar mais e mais? Taco mais água, pô! Afinal eu ficaria muito alegre por meu filho divertir-se com a mesma coisa como eu há mais de vinte anos antes. Seria maravilhoso, eu e ele brincando a valer com aquele moinho. Putz! Pensava e até ficava rindo por dentro da minha luminosa ideia!

E mãos à obra! Num fim de semana lá estávamos eu e o César, seu tio e fiel escudeiro, elaborando o engenho com algumas dificuldades porque não tínhamos nenhuma ferramenta adequada, lidando com soquete e faca de cozinha, garfo para servir de furador; enfim, improvisações trazidas lá da minha infância.

Ficou pronto. Antes de chamar o Luciano, enchemos o reservatório de água e verificamos se tudo estava a contento. O bichinho tava um trem de bom! Zunia! Ah! Sei lá! Acho que nem tanto! Eu estava muito excitado; por isso! Jogava respingos d’água para cima e fazia aquele barulhinho característico. Eu tive que soltar uma baita risada de tão alegre e já imaginando a cara do Lu quando visse aquilo. Certamente ele iria querer botar o dedinho, pegar, destroçar, mas a gente já havia traçado estratégias para as negociações e tentar convencê-lo a ficar admirando somente. Já o via de cócoras e dando também gargalhadas nervosas com aquela brincadeira, teimando em levar a mãozinha para pegar a cruzeta girando e a água molhando-o todo. Eu, no fim de tudo, não iria ter coragem de brecar; ele faria o que bem entendesse. Afinal o brinquedo era para ele. Eu já não tinha mais nenhum motivo para querer ficar com aquilo para mim. Meu tempo já havia passado. Mas que eu estava gostando, ah! Ah! Isso eu estava!

Enchemos a lata com a água. César tapou o pequeno orifício feito e chamamos o menino. Chegou e abaixou-se, ficando de cócoras tal como imaginei e olhando atento. Pedi ao César para soltar o dedo daquele lugar. A água foi liberada e o moinho começou rodar.

Nem olhei para a engenhoca. Fiquei todo sorridente e atento às feições do meu filho. Ele não teve nenhuma reação, não deu a mínima atenção àquela maravilha imaginada por mim. Logo se levantou e continuou brincando com o tratorzinho e a terrinha dele debaixo da jabuticabeira. Esperei a água acabar de escorrer e pedi ao César para jogar aquilo num canto qualquer.

O tempo estava modificando os costumes. Só eu não ainda não tinha percebido. Foi como um direto na ponta do queixo, camarada! O knockout me fez acordar para a realidade.

Dbadini
Enviado por Dbadini em 17/05/2009
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