Os Girassóis

Os Girassóis

Seu Chico chegou meio desconfiado à Biblioteca Pública Municipal, onde funcionava a Divisão de Educação e Cultura do Município e falou ao primeiro servidor que precisava conversar com a diretora.

Levado à minha sala pelo porteiro, cumprimentou-me muito acanhado e entregou-me uma correspondência. Era uma ordem judicial para cumprir sentença, durante três meses, numa instituição e foi escolhida a Biblioteca Pública.

Mandei-o sentar e ainda tomada de espanto, convidei-o a visitar a área dos fundos do prédio, naquela época necessitando de limpeza, pois o mato crescera entre as pedras, nesse terreno árido e quase sem vida, ao contrário da frente, toda gramada e com muitas plantas ornamentais, sob os cuidados de Seu Durval, o jardineiro.

- Seu Chico, o senhor poderá trabalhar aqui, fazendo a limpeza desta área. Depois, plantará alguma coisa para melhorar a paisagem. Seu horário é de oito horas diárias, conforme determinou o juiz na correspondência. Espero que tudo dê certo. De quando em vez, deverei comunicar ao Excelentíssimo Juiz o seu comportamento. É o que diz o escrito.

- Sim, senhora. Vou cuidar desse quintal com muito carinho. Pode deixar comigo.

Os dias foram passando e, com algumas semanas de trabalho, carregando pedras, retirando lixo, o quintal da Biblioteca já não era o mesmo.

Seu Chico tornou-se amigo de todos que ali trabalhavam. Na sua humildade, cativou as pessoas. Não se metia em conversas de ninguém, também nada falava sobre si mesmo. Limitava-se ao estritamente necessário. Tinha comportamento exemplar.

Um dia, ele chegou à minha sala para dizer que o terreno estava pronto e me fez a seguinte pergunta:

- O que a senhora quer plantar? A área é grande!

Perguntei-lhe, então:

-Pode plantar flores?

E ele, com um brilho nos olhos, respondeu:

- Pode!... As flores embelezam tudo, D. Mena.

-Que bom, Seu Chico! Precisamos mesmo alegrar os nossos dias. Afinal, trabalhamos tanto, não é?

Ao dizer-lhe isso, percebi que seu semblante mudara. Uma nuvem de tristeza invadiu-lhe o olhar e uma lágrima brotou no canto do seu olho, tremeu e, meio indecisa, rolou pela sua face enrugada precocemente pelo sol. Um semblante triste se fez de repente, dando mostras de alguma dor, que eu não sabia de quê.

Era passado mais de um mês e ele nunca me dissera nada. Nem eu ouvira de nenhuma outra pessoa a razão de estar ali um homem, aparentemente calmo, disciplinado, cumprindo sentença por haver cometido algum crime. O que eu sabia é que ele cumprira uma parte da pena na prisão e que, pelo seu comportamento, iria prestar serviço em liberdade. Se roubou, se matou, ninguém sabia...

E Seu Chico, tomado de emoção quando lhe disse para plantar flores, sugeriu:

- Vamos plantar girassóis, D. Mena? Eles crescem rápido e tudo aqui vai ficar uma beleza! Depois, eu quero ver o resultado do meu trabalho, se agradou...

Comprei as sementes e ele as semeou por toda a área do quintal.

Com carinho, molhava as covas pela manhã e à tardinha. Era um ritual que praticava com felicidade todos os dias. Entrava, trabalhava, saía... Dia após dia, arrancava o mato que nascia, adubava, molhava e as plantinhas cresciam viçosas. Quando terminava esse trabalho, ajudava o jardineiro a cuidar da frente, onde havia o jardim. Seu Chico era feliz.

E eu observava esse homem que, diariamente, cumpria sua pena, calado, cabisbaixo, sem, no entanto, deixar de se encantar com a sua plantação.

Passaram-se os dias. Muitos dias. Havia algum tempo que, por ossos do ofício, não saía da minha sala.

Um dia, porém, de sol muito quente, resolvi abrir as janelas que davam para o quintal e qual não foi a minha surpresa quando vi Seu Chico, aquele homem baixinho, de pernas tortas, perdido entre os pés de girassol, cujas flores, quais sóis voltados para a minha janela, traziam para dentro da sala, reflexos de uma alma prestes a viver a felicidade de ser livre..

E abriram-se todas as outras janelas. E as pessoas que trabalhavam ali ficaram por alguns instantes admirando a beleza daquela paisagem redentora. Parece que o “sol da liberdade” brilhava ao redor de Seu Chico.

A razão por que Seu Chico estava ali cumprindo pena, fiquei sabendo logo após esse dia. Tive a certeza, então, de que aquelas mãos que antes plantavam MACONHA, plantariam, de agora em diante, girassóis, que brilhariam na sua vida como o “sol da redenção”.

- Cadê seu Chico?

- Para onde foi?

- Em que “estrela se esconde?”

Eram perguntas que as pessoas faziam umas às outras, sem obter resposta. Nem eu, nem ninguém que o conheceu nessa época, sabia dele.

Deve estar por aí. Talvez, quem sabe, plantando girassóis e espargindo por onde anda a luz da liberdade.

Se os girassóis representam vitalidade e a busca pela luz, pela transparência, não terá sido essa a razão pela qual Seu Chico sugeriu plantar girassóis?