Faroeste: onde?

A questão da violência sempre foi um estigma que caracterizou e, ainda caracteriza, os bárbaros habitantes do oeste brasileiro. Somos do oeste e somos o oeste. Depois da chegada dos bandeirantes paulistas para conquistar esse espaço muito sangue já jorrou pelo cerrado, pelo pantanal e pelas terras aráveis de hoje. É uma visualização chocante que se promove: sangue e clorofila.

Muitas lendas nos assustam, são horríveis e nos perguntamos freqüentemente: como pode o “homem” fazer isso ao próprio “irmão”? Lampião, o maior cangaceiro do Brasil se sentiria envergonhado de seus feitos se tivesse oportunidade de conhecer os nossos. Faroeste americano que nada, fazemos melhor do que qualquer indústria cinematográfica desse planeta possa sonhar. Damos aulas gratuitamente a quem possa interessar. Quem sabe Osama e os fundamentalistas do Oriente Médio não tenham tomado conhecimento das proezas do povo do oeste?

Cito alguns exemplos bem ilustrativos e que nos levam para dentro das telas do cinema e para a universalidade da arte, recentemente conheci os filmes Pantanal de Sangue (1971), de Reynaldo Paes de Barros e Caingangue: a pontaria do diabo (1973) de Carlos Hugo Christensen que são significativos e bem desconhecidos, aliás. Talvez porque a verdade nem sempre seja agradável de ser vista. Mais fácil é ver o problema do Outro, ele é quem tem problemas, nós não. Resolvemos os nossos à bala, mas a nossa é mais doce, para seu uso tão prosaico temos uma justificativa na ponta da língua: questão de defesa, de honra, etc. qualquer uma serve, desde que seja nossa, genuína.

Retratos de uma guerra pela terra, lutas agrárias sempre foram o nosso forte. É bem verdade que em alguns períodos deram espaço ao tráfico de drogas, ao contrabando de café, de soja, de cigarros e de outras “cositas más”. A truculência é hereditária e, aparentemente, vêm de um tempo sem lei, de um tempo sem fim. Tempo em que a munição era quase moeda, o poder de fogo vencia sobre qualquer outro.

Quando à sétima arte se encarregou de eternizar em imagens os retratos da dor e do medo deixou um sinal em suspenso ao final das cenas de que ela permanecerá infinitamente, parecendo a máxima: “que seja eterna enquanto dure”.

Nossas cidades de hoje não são em nada diferentes daquelas do Faroeste americano ou daquelas obscuras cidades de fronteira da lei do artigo 38 ou do 44. Bem verdade que os artigos evoluíram e bastante. Sessões de cinema ao vivo e a cores, de graça, todos os dias, chamem as crianças, as mulheres e os velhos porque o show vai começar a qualquer momento, todos apostos em seus lugares de espectadores privilegiados: atiradores de gabarito, armas à vontade, charme do crime impune e sangue, e dor, e nada além de passividade serão apresentados. Ser bandido é melhor do que ser mocinho? Muitos pensam que sim ou me equivoco?

Memórias não muito distantes de uma região de fronteira em que se arrastavam pessoas presas à traseira dos veículos pelo centro da cidade “para dar exemplo”. Tempos em que costuravam a boca da vítima ainda viva com arame farpado para impor silêncio. Tempos em que queimavam os corpos junto aos pneus velhos e nem se dava, ainda, o nome de “microondas”. Hoje fazem isso não para dar exemplo ou para impor silêncio, mas por maldade mesmo, acabou a moral da história, ficou só a barbárie. Tempos em que eram comuns nos encontros de amigos se falar que “acharam” mais uns fuzilados, queimados, picados jogados no lixão próximo ao “marco grande” ou a linha de fronteira. Nenhum dos países ia recolher o “achado”, azar o dele de ter tombado na terra de ninguém.

Memórias de uma menina franzina, bem criança ainda, que nos final da década de 70 e início dos anos 80 antes de ir à escola, todos os dias, fazia um desvio no trajeto para visitar o necrotério público, uma velha casinha de madeira, mórbida, mas branca, e ver se havia alguma “novidade” por lá. Sempre havia. Só era preciso não chegar muito perto, poderia sujar o uniforme e a mãe haveria de querer uma explicação. Pode parecer poético, mas não era. Garanto.

Muitas das vezes a “novidade” envelhecia por lá mesmo, ficava largada dias e dias, o líquido fétido que vazava dos corpos escorria pelo azulejo branco e ia encontrar os visitantes à porta enquanto as moscas faziam a sonorização do ambiente. Uma recepção que o cinema não pensou. Algumas famílias não tinham coragem de reconhecer seus mortos, de levá-los para um enterro mais digno do que a própria morte, iam ao necrotério, viam seu familiar, despistavam e diziam um adeus silencioso, sem lágrimas, obrigatório a quem quisesse viver. Bárbaros quem? Eles? Os colonizadores dos primeiros séculos após a chegada à América? Os povos do Oriente Médio que matam e morrem por religião? Acho que não.

Bárbaros são os colonizados, como nós, que depois de assimilarem bem os métodos dos colonizadores se especializam e praticam bastante para fazer melhor. É um exercício de superação, quase um treinamento militar. Um círculo vicioso, uma demanda sem fim. Brancos contra índios, brancos contra brancos. Violência é apenas violência não tem pele. Qualquer algoz e vítima servem.

A propósito, a menina sou eu, que cresci e continuo vendo as mesmas cenas, seja na ficção ou na realidade.

Roselene Berbigeier Feil
Enviado por Roselene Berbigeier Feil em 03/06/2009
Código do texto: T1630776
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