Escrevi e salvei minha alma

Dizem que a preocupação é o mais inútil dos sentimentos. Justificam-se pela raiz da palavra: uma ocupação que vem antes. E o pior de tudo: vem antes de uma hipótese.

Em outras palavras, o sujeito fica ali se remoendo em pensamentos sobre algo que pode vir a ser um problema. Ainda por cima, uma ameaça que pode nunca se concretizar. Isso é a preocupação.

Ela sozinha é de fato inútil. Mas vive nesse sentimento, tão criticado pela sociedade, o poder de se transformar em ação, a partir do momento em que se o põe pra fora. Aí, o inútil pode virar útil.

Senão vejamos... Quando uma pessoa passa pela frente de um prédio, preocupa-se por observar rachaduras na marquise, avisa ao porteiro e, por conta disso, são feitas obras, terá sido inútil aquela preocupação? Bem, talvez aquela marquise pudesse nunca cair, mas são pequenas preocupações como essas, sócias fiéis da prudência, que podem salvar uma ou centenas de vidas. Há uma forte suspeita de que neste último grande acidente de avião que tivemos, os sensores, peças-chave de qualquer avião, estavam com defeito há muito tempo e a companhia aérea sabia. É claro que inúmeros outros fatores podem ter derrubado o avião e esse tal defeito pode não ter sido decisivo pra isso. Mas, como na preocupação trabalhamos com hipóteses, o oposto também tem total condições de ser verdadeiro. E aí, pergunto: será que, antes daquela fatídica decolagem, não havia um ser humano preocupado por lá? Ou será que, em certos casos, o vil metal parece mais útil aos olhos humanos do que preocupações?

Continuando a defesa da preocupação, aquela bem dosada e verbalizada, quando um governo se preocupa com seu povo, porque sente que problemas graves poderão ocorrer e, por conta disso, convoca seus ministros a tomar providências para a melhoria da qualidade de vida do país, terá sido inútil essa preocupação? Óbvio que não. E a preocupação, quando não por interesses próprios, é em última análise uma manifestação de amor ao próximo, seja conhecido ou não, o que, geralmente, provoca reciprocidade. Parece uma conseqüência lógica que um governo que tem carinho por seu povo, preocupando-se com o futuro do país, ganhe, com isso, o carinho da imensa maioria da população.

E, pra terminar a defesa desse injustiçado sentimento, quero tocar no ponto mais delicado de todos. A preocupação em família e entre amigos. Ora, por que delicado? Porque, por incrível que pareça, é aí onde ela encontra mais relutâncias e desconfianças. Quantas vezes os filhos rejeitam solenemente as muitas preocupações de seus pais? Ou, até mesmo, vice-versa. Ou, ainda, quantas vezes um amigo seu já deu de ombros pra sua preocupação com ele? “Ah, essa dorzinha passa logo, não é nada, deixa de besteira.” Aí daqui a pouco você é chamado num hospital. “Não bebe muito, que você não agüenta bebida, filho/pai”. Aí daqui a pouco chega um bêbado na sua casa. E por aí vai...

Você já passou por alguma situação semelhante a essas? Deus queira que não tenha dito o deplorável “eu avisei”. Acredite, isso magoa. Eles sabem que você avisou. Além do mais, o importante de se ressaltar aqui é quantas vezes o contrário acontece na nossa vida. Pense você mesmo em quantas vezes aquela preocupação que você expressou por um ente querido, do seu sangue ou não, surtiu efeito.

Bem, por esses prismas que envolvem nosso plano afetivo, não resta dúvida de que a preocupação está, de forma mais visível do que nos outros casos, condicionada à idéia de conselho. E, diz o ditado: “Se fosse bom...” Pode haver ditado mais capitalista que esse?! A preocupação por quem se gosta, quando materializada num conselho, tanto pode ser a salvação da lavoura como pode não dar em nada, mas você terá sempre a dignidade de ter tentado.

Em resumo, para todos os casos citados neste texto e para todo o sem número de casos possíveis, a preocupação só é inútil se você preocupar-se calado. Isso até me fez lembrar algumas palavras deixadas escritas em latim pelo gênio da crítica ao capital, Karl Marx: “Disse e salvei minha alma”.

A quem se preocupa (inutilmente) com a raiz da palavra, deixo aqui uma pergunta: o que seria do mundo se grandes homens não tivessem se ocupado antes com as hipóteses do depois?

Ana Helena Tavares
Enviado por Ana Helena Tavares em 06/06/2009
Reeditado em 06/06/2009
Código do texto: T1635715